Membros do governo federal estão empenhados em promover a liberação de criminosos como política pública para resolver o problema da superlotação das prisões no Brasil. Declarações nesse sentido têm partido de ministros, secretários, aliados e do próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas últimas semanas.
Em um discurso no lançamento do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) II, no mês passado, Lula defendeu ideias caras ao movimento antipunitivista. Afirmou, por exemplo, que "um jovem com 18 anos" que comete crimes "entrou um inocente" na cadeia e é "uma vítima de um delito que muitas vezes não tinha clareza do porquê estava cometendo aquilo" (sic).
As falas de Lula estão em sintonia com o que secretários, ministros e outros membros do governo têm repetido desde fevereiro.
Na primeira semana de abril, uma comitiva do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) foi ao Rio Grande do Norte para conversar com autoridades locais sobre formas de se evitar novas ondas de atentados de facções criminosas como a que ocorreu em março. A ideia de desencarceramento foi a tônica das falas.
"Há necessidade de discutir uma política de desencarceramento na qual a gente consiga garantir que os espaços de privação de liberdade sejam cada vez mais dignos e com garantia de direitos", disse o ouvidor nacional de Direitos Humanos, Bruno Renato Teixeira. A coordenadora-geral de Combate à Tortura do MDHC, Fernanda Vieira, mostrou-se satisfeita ao saber que gestores locais se dispuseram a planejar ações "em uma perspectiva de desencarceramento".
No Ministério da Justiça e Segurança Pública, o discurso é semelhante. Rafael Velasco, secretário Nacional de Políticas Penais da pasta, é um defensor do que chama de "desencarceramento consciente". "Devemos colocar as alternativas penais no mesmo patamar da prisão", disse em seu discurso de posse, em fevereiro.
O especialista em segurança pública Davidson Abreu, oficial da Polícia Militar de São Paulo e autor do livro "Tolerância Zero", diz que a aposta petista no desencarceramento é "uma solução ideológica e fácil", que só serve de subterfúgio para evadir-se da necessidade de criar mais penitenciárias no Brasil e de melhorar suas condições. "É mais fácil desencarcerar do que o governo ter o trabalho de construir presídios, de manter os presos sob sua custódia e de retomar o controle dos presídios", afirma.
Da mesma forma como algumas favelas e bairros sofrem com a atuação de organizações criminosas, destaca Abreu, muitos presídios também estão sob domínio do crime organizado. "Retomar esse domínio custa muito caro politicamente, porque vai haver guerra, conflito, rebeliões. Então, o governo pode escolher a solução mais fácil e econômica para ele. Segurança pública gera um custo financeiro e político, e poucos estão interessados em enfrentar isso, principalmente quando a ideologia entra", comenta.
Eduardo Matos de Alencar, doutor em sociologia e autor do livro "De quem é o Comando? O desafio de governar uma prisão no Brasil", afirma que liberar presos para melhorar as condições das penitenciárias seria análogo a reduzir a quantidade de internados para resolver o problema das filas nos hospitais. "A única maneira de reduzir a quantidade de internados no hospital é prevenir doenças ou tratá-las antes de que as pessoas precisem ir ao hospital", diz. "Se tem muita gente doente, tem que ter muita gente internada. O mesmo vale para a prisão."
Para Alencar, enquanto não houver políticas eficazes de prevenção ao crime, "é preciso prender mais gente, mais rápido e por mais tempo", o que passa necessariamente por construir mais prisões. "Não há políticas de prevenção adequadas neste governo – nem em qualquer outro que o Brasil costuma ter –, que tratem de problemas relacionados ao que de fato gera a violência, como famílias desestruturadas, consumo excessivo e abuso de álcool e outras drogas, consumo excessivo e abuso de crack, desorganização das comunidades, desorganização das vizinhanças, escolas sem controle e violentas, mercado ilegal de droga estabelecido, mercado ilegal de armas estabelecido… Há diversas instituições e mecanismos que contribuem para desaguar no cenário de violência. Se você não trata isso, você tem que tratar o efeito disso, com polícia e prisão."
Além disso, na visão do especialista, qualquer política de prevenção, por mais eficaz que seja, tem efeito de médio a longo prazo, e "não funciona se o Estado não estiver resolvendo o problema dos marginais que assolam a sociedade agora".
É "uma barbaridade", para ele, a ideia de que reduzir a quantidade de presos contribuiria para diminuir a força dos grupos criminosos nas cadeias. "A quantidade de presos é grande, de fato, mas o desencarceramento, por maior que fosse, não chegaria nem a 20% do total, e isso não seria suficiente para enfraquecer o PCC. Dizer que o PCC vai perder força porque há menos presos não faz o menor sentido."
Liberar os presos com atraso na progressão devida de regime, por exemplo, teria um efeito pouco significativo, de acordo com Alencar, já que esses casos são proporcionalmente poucos. "E mesmo essa progressão deveria ser extinta para crimes graves como o homicídio. Você, então, vai fazer o quê? Parar de prender assassino, ladrão, traficante? Soltá-los mais cedo ainda?", questiona.
Brasil já adota política de desencarceramento, e ela é desastrosa, diz especialista
O promotor de Justiça Bruno Carpes, autor do livro "O Mito do Encarceramento em Massa" e membro do Núcleo de Pesquisa e Análise da Criminalidade da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais, diz que "nós já temos, no Brasil, uma política de desencarceramento" e que exacerbar essa tendência seria "uma grave violação aos direitos humanos".
Prova disso, aponta ele, é que a legislação penal brasileira tem cerca de 1050 tipos penais, mas somente 2,7% desses crimes resultam, atualmente, em prisão em regime inicialmente fechado.
Para Carpes, não se pode culpar a legislação ou o Poder Judiciário pela superlotação dos presídios. A União é omissa "há no mínimo três décadas" no uso do Fundo Nacional Penitenciário, e essa omissão é determinante para a superlotação dos presídios, ressalta o especialista. "Por mais de uma década, houve contingenciamento de valores, ou seja, os valores não foram totalmente utilizados. Esse é um dos motivos da superlotação", diz. "Em vez de se assumir a culpa pelo passado e reconhecer essa omissão que resultou em presídios superlotados, não: apostam no que está dando errado, que é uma legislação muito leniente."
A suposta atuação rigorosa do Judiciário tampouco pode ser apontada como motivo da superlotação das cadeias, afirma Carpes. Juízes brasileiros são cada vez mais adeptos do garantismo penal, como mostrou reportagem da Gazeta do Povo.
"No cenário forense, nós temos pesquisas que mostram o que acontece dentro das varas judiciais. Por exemplo, no Rio de Janeiro, já se apurou que só 5% dos processos criminais de todo o Estado – que é um dos mais violentos do país – detêm os réus presos. Ora, como é que se vai acusar o Poder Judiciário de prender mais do que deveria, se apenas 5% dos processos criminais detêm réus presos? Nós temos que olhar um pouco os fatos e esquecer um pouco o discurso ideológico", critica Carpes.
Reduzir tolerância a atos criminosos tende a esvaziar cadeias a longo prazo
A ideia de que o combate intransigente ao crime tende a deixar as prisões mais vazias pode parecer um contrassenso. Mas, a longo prazo, é justamente isso o que acontece, segundo Carpes.
"O grande exemplo disso, conhecido internacionalmente, é a política de tolerância zero do Rudolph Giuliani em Nova York, inspirada na teoria das janelas quebradas do George Kelling e do James Q. Wilson. Os gráficos sobre Nova York mostraram o seguinte: no início, como havia muitos criminosos na rua, houve um aumento significativo de prisões. Mas chegou uma hora em que isso entrou num platô. Como o tamanho das penas aumentou e as investigações melhoraram, e como esse criminoso não saía tão cedo da prisão e parava de frequentar a rua, o crime começou a cair. Quando o crime começa a cair, menos prisões são efetuadas."
No Brasil, embora não seja possível estabelecer uma relação clara de causa e efeito, a diminuição do número de homicídios e dos dados de crimes violentos tem acontecido ao mesmo passo de uma queda no número de pessoas presas. Entre o final de 2018 e meados de 2022, segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, a população carcerária do Brasil caiu 11,1%. Foi a primeira vez que o número de detentos caiu no Brasil durante um governo.
Curiosamente, em 2018, o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PL) afirmou em campanha que ia "entupir a cadeia de bandidos". Mesmo fazendo o exato oposto do que havia prometido, o ex-presidente entregou o país a Lula com quase 20 mil homicídios a menos por ano em comparação com o ano final do governo de Dilma Rousseff (PT).
"Pequenos traficantes" de drogas podem ser maiores beneficiados entre os criminosos
No esforço do governo por fazer avançar uma política de desencarceramento, um dos principais grupos beneficiados tende a ser o de "pequenos traficantes" de drogas, isto é, aqueles que vendem quantidades menores das substâncias e não praticam violência física direta contra pessoas. Declarações de membros do governo já sugerem isso.
O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, afirmou em uma entrevista à BBC Brasil em março que é favorável à descriminalização das drogas como forma de reduzir o encarceramento no Brasil. Para ele, as drogas têm que ser tratadas como "uma questão de saúde pública, como uma questão que não se resolve por meio do encarceramento, com prisão e com punição". Ele reiterou essa ideia na última quarta-feira (12), em audiência na Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados.
A relativização do pequeno tráfico como crime é uma bandeira comum da esquerda. Já foi defendida publicamente pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), e ficou implícita, recentemente, em uma recomendação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) enviada ao governo Lula. Em um documento do começo de abril com propostas emergenciais contra a crise no Rio Grande do Norte, a entidade sugeriu que Lula concedesse perdão a todos os presos acusados por crimes sem violência ou grave ameaça – como costumam ser classificados os delitos dos pequenos traficantes.
Para Fabricio Rebelo, coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), o tráfico de drogas praticado sem violência física direta não pode ser considerado inofensivo. "Embora, em si mesma, essa atividade possa não estar atrelada à prática de violência, ela tem, sim, em seu entorno uma série de outras atividades periféricas que são extremamente violentas. Basta ponderar que a esmagadora maioria dos homicídios que hoje são registrados no Brasil tem vinculação direta com a atividade do tráfico. A política do desencarceramento traz uma desculpa palatável à sociedade com essa ideia de que o tráfico não é um crime efetivamente violento, mas o tráfico traz um risco social extremamente alto de aumento desenfreado da criminalidade", observa.
Promover o desencarceramento sem gerar um aumento significativo do risco à sociedade, para Rebelo, é "absolutamente utópico". "Há poucos criminosos de ocasião no Brasil, e temos um problema crônico de reincidência criminosa, de indivíduos que se dedicam habitualmente à prática de crimes. Então, a possibilidade de colocar esses indivíduos habitualmente dedicados ao crime em liberdade não pode vir desassociada ou separada de um aumento substancial no risco social", explica Rebelo.
O incentivo que um Estado leniente com o crime pode significar para a reincidência criminal, aliás, ganhou evidência após a recente tragédia na creche em Blumenau (SC), que deixou quatro crianças mortas. O assassino já tinha sido autuado por posse de cocaína, por ter esfaqueado o padrasto e por uma briga em uma casa noturna, mas nunca havia sido preso.
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