O Ministério da Saúde publicou uma Portaria, nesta sexta-feira (28), que estabelece novos critérios para procedimentos de aborto em decorrência de estupro, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Entre as mudanças, o texto é mais claro do que normativas anteriores para proteger a gestante, aumentando o cerco ao autor do crime de estupro e, além disso, para não permitir falsa denúncia.
Ele estabelece como obrigatória, por exemplo, a notificação às autoridades policiais, por parte de profissionais de saúde, quanto ao acolhimento de pacientes vítimas de estupro. Ainda, determina que sejam preservadas possíveis evidências materiais do crime, "tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos, a serem entregues imediatamente à autoridade policial", pois poderão levar à identificação do respectivo autor do crime.
O documento também torna clara as possíveis consequências do aborto voluntário - regra habitual para qualquer outro procedimento de saúde, mas que não era considerada, até então.
Cerco ao autor do crime de estupro
Desde 2005, sob a gestão do ex-presidente Lula, as normas para a prática do aborto sofreram alterações e passaram a desobrigar vítimas de estupro de apresentar Boletim de Ocorrência para realizar o procedimento , bastando apenas que a gestante declarasse ter sido vítima de "violência sexual". O texto anterior ainda faz uma confusão terminológica ao promover o conceito falso de "aborto legal" - na verdade, o artigo 128 do Código Penal determina que a prática não seja punida em casos de risco de vida para a mãe e quando a gravidez é fruto do estupro. Entenda aqui.
Ao tornar obrigatória a "notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro", o documento impede que o abusador induza a mulher a fazer o aborto e volte a cometer o estupro, tendo em vista que grande parte da violação é sofrida na casa das vítimas.
Mapeamento de 2019 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) aponta que pelos menos 40% dos crimes de violência sexual infantil no país foram cometidos por pais ou padrastos. Ainda, 14% dos crimes dessa natureza foram realizados pelas mães das vítimas, 9% pelos tios, 7% por vizinhos e os outros 30% dos casos são de responsabilidade de "outros". Pelo menos 73% dos crimes de violência sexual infantil aconteceram na casa da própria vítima.
"Isso [a previsão do Boletim de Ocorrência], no caso concreto, ao meu ver, traz solução para uma questão delicada, que é o abuso doméstico continuado de menores", afirma Lenise Garcia, doutora em microbiologia e presidente do Movimento Brasil sem Aborto. "Sabemos que boa parte dos abortos são feitos por menores de 14 anos, consideradas vítimas de estupro, em qualquer situação. Está na lei. E, ainda, não existe possibilidade de consentimento, mesmo que, na prática, haja esse tipo de situação".
"Esse tipo de ação costuma ser cometida por pessoas próximas à vítima e, muitas vezes até pela delicadeza da situação, não se indicava o autor do crime e ele acabava continuando com abuso. Acabávamos encobrindo o próprio crime pra ele", aponta a especialista. "Em muitos casos, o próprio abusador assinava como responsável, e isso era muito inaceitável. Mas essa nova Portaria traz solução para esse tipo de caso: uma pessoa que chega dizendo que foi estuprada pelo namorado tem de estar disposta a mandar o namorado para a cadeia".
O documento também adota de forma mais clara os termos "vítima de estupro". Diferentemente da antiga portaria, que fala em "vítima de violência sexual" e na qual aparece a palavra estupro apenas duas vezes, o novo texto cita 10 vezes o termo estupro.
Consequências do aborto voluntário
Diferentemente das normativas anteriores, o Ministério da Saúde também estabeleceu que a gestante deve ser orientada por parte dos profissionais de saúde sobre os desconfortos e riscos possíveis à saúde com a realização do aborto, bem como da assistência e acompanhamentos posteriores possíveis ao procedimento.
"Faz-se necessário trazer o detalhamento dos riscos da realização da intervenção por abortamento previsto em lei [...] os riscos apontados têm como base os protocolos da Organização Mundial de Saúde (OMS)", diz o documento.
"Podem ser coisas que muito eventualmente podem ocorrer, mas o paciente tem que estar informado, tem que concordar e deve ter a possibilidade de repensar", diz Lenise Garcia.
A equipe médica também deverá informar à gestante acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia. "Caso a gestante deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada", propõe a Portaria.
"[Antes da alteração] as eventuais vítimas de estupro, caso quisessem ver seus filhos antes de tomar uma decisão tão grave como a de abortar, ficavam à mercê dos médicos e dos hospitais em que estivessem, médicos esses que, por muitas vezes, comprometidos com a causa abortista, poderiam negar à gestante esse direito, a fim de evitar que elas desistissem de realizar o aborto, por ver claramente que estavam lidando com outro ser humano", afirma o deputado Diego Garcia (PODE-PR).
O documento deixa de fora um dispositivo do Termo de Consentimento da antiga Portaria, que deveria ser assinado pela vítima, e prevê: "estou informada da possibilidade de manter a gestação até o seu término, sendo-me garantido os cuidados de pré-natal e parto, apropriados para a situação; e das alternativas após o nascimento, que incluem a escolha de permanecer com a criança e inseri-la na família, ou de proceder com os mecanismos legais de doação".
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Pressão da sociedade
Para fazer as alterações no documento, o Ministério da Saúde citou, entre outros motivos, um pedido feito pela Defensoria Pública da União (DPU). Após solicitação da Associação Guadalupe, cuja missão é a defesa da vida da concepção à morte natural, a Defensoria solicitou oficialmente a revogação da Norma Técnica anterior, "Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes".
As alterações na normativa, por outro lado, ainda são consideradas incompletas por representantes de movimentos Pró-Vida. "Comparado à portaria original, as mudanças trazem alguns avanços, mas que com certeza poderiam ter sido maiores, uma vez que que não existe aborto legal no Brasil, apenas hipóteses em que o crime é despenalizado. Assim, é inaceitável que uma prática que é tipificada como crime, ainda que despenalizada, seja realizada pelo SUS", afirmou o deputado Diego Garcia (Pode-PR).
*Leia a íntegra da Portaria:
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