Resumo desta reportagem:
- O Ministério do Desenvolvimento Agrário transferiu, em março, R$ 200 mil a título de fomento para a cooperativa Terra Livre, vinculada ao MST. Os recursos foram empregados na compra de carros para a cooperativa.
- O petista Edegar Pretto, presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao MDA, é irmão de Adelar Pretto, que era diretor da Terra Livre na época do repasse. A transferência ocorreu uma semana após Edegar assumir o cargo.
- A cooperativa, que já recebeu quase R$ 8 milhões em recursos federais, recentemente foi sancionada por descumprir contrato de entrega de alimentos para merenda escolar.
- Entre 2022 e 2023, a Terra Livre recebeu repasses milionários de órgãos públicos, a maior parte com dispensa de licitação.
O Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), do governo federal, destinou recentemente R$ 200 mil à cooperativa Terra Livre, do Rio Grande do Sul, vinculada ao MST. Os valores foram repassados no dia 31 de março a título de termo de fomento, que na prática é um mecanismo de parceria entre a administração pública e organizações da sociedade civil com objetivo de viabilizar ações de interesse público.
Apesar disso, a Gazeta do Povo apurou que os recursos repassados têm como objetivo a aquisição de três veículos para visitas a clientes da cooperativa a fim de comercializar os alimentos produzidos. Segundo o diretor da Terra Livre, Carlos Pansera, o comércio desses produtos teria como objetivo “fortalecer a agricultura familiar” e fomentar “uma rede de comercialização estruturada e definida”, o que, em sua visão, justificaria o necessário interesse público exigido para o repasse.
O repasse também chama a atenção por outro motivo: o coordenador estadual do MST no estado gaúcho, Adelar Pretto – que constava no quadro societário da Terra Livre como diretor da empresa até maio deste ano, dois meses antes da transferência dos R$200 mil pelo governo – é irmão do presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao MDA, de onde saiu o repasse.
Edegar Pretto, que é membro do Partido dos Trabalhadores (PT) desde 1989 e já exerceu o mandato de deputado estadual pelo Rio Grande do Sul por três mandatos, foi nomeado à presidência da Conab uma semana antes da transferência dos recursos à Terra Livre. Ainda neste ano, outras cooperativas, algumas delas ligadas ao MST, também receberam repasses semelhantes que chegaram a R$ 800 mil por termos de fomento.
Apesar de ter deixado o quadro societário da cooperativa recentemente, o irmão do presidente da Conab exerce cargo de diretor na cooperativa Agropecuária Vista Alegre (Coopava), localizada no município de Piratini, no estado gaúcho. A entidade faz parte da rede de cooperativas de seis estados que formam a Terra Livre – todas elas vinculadas ao MST e grande parte comandada por lideranças do movimento.
Governo diz que repasse vem de emenda parlamentar, mas não fornece informações
A reportagem pediu esclarecimentos ao Ministério do Desenvolvimento Agrário sobre os termos acordados com a cooperativa, em especial em relação ao interesse público que o repasse para a compra de veículos estaria cumprindo. Em resposta, a pasta informou que o termo de fomento foi celebrado faltando dois dias para encerrar o governo anterior e que o recurso é oriundo de indicação de emenda parlamentar.
“O que ocorreu recentemente foi apenas a prorrogação de vigência ‘de ofício’, que é obrigação do concedente quando der causa a atraso na liberação dos recursos, limitada a prorrogação ao exato período do atraso verificado. A vigência original era de 30/12/2022 a 30/12/2025, os recursos foram liberados apenas em 31/03/2023, razão pela qual a prorrogação de ofício deveria se dar pelo prazo de 03 meses (tempo do atraso na liberação), conforme verifica-se na publicação alterando o fim da vigência de 30/12/2025 para 30/03/2026”, diz nota do ministério.
Considerando que não houve resposta adequada ao questionamento sobre os termos do convênio com a cooperativa, a reportagem fez novo pedido de informações sobre os termos do repasse, indagando também qual parlamentar teria feito a indicação dos recursos. O ministério não mais retornou aos contatos da Gazeta do Povo.
CNPJ da Terra Livre tem pendência ativa por descumprir contrato com município do RS
Beneficiada com recursos federais, a cooperativa Terra Livre tem, atualmente, uma pendência registrada no Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas por descumprir um contrato firmado com a prefeitura de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro.
Após chamamento público, em abril do ano passado a prefeitura do município assinou contrato de R$ 890 mil com a empresa para aquisição de leite em pó e frutas e verduras para merendas nas escolas da rede municipal. O contrato foi rescindido cinco meses depois, já que os produtos estavam sendo entregues fora dos prazos estabelecidos. No total, foram repassados à empresa R$ 330 mil referentes aos itens entregues no período.
“A partir do momento em que houve atrasos na entrega, foram feitos os alertas pela municipalidade, que culminaram com a penalização da contratada”, informou a Prefeitura de Nova Friburgo à Gazeta do Povo. A penalização aplicada foi a proibição de participar de licitações e contratos com o município por dois anos.
À reportagem, a Terra Livre informou que os atrasos ocorreram em decorrência de “confusões burocráticas e contábeis” e que a empresa entrou na Justiça para reverter a sanção. “Após a assinatura do contrato, sobrevieram quatro solicitações de entrega e devido a confusões burocráticas e contábeis ocorridas, principalmente por inconsistências das exigências por parte da Prefeitura de Nova Friburgo, houve atraso na entrega dos produtos, o que motivou o órgão a aplicar a sanção”.
A Gazeta do Povo também pediu à diretoria da Terra Livre esclarecimentos sobre os motivos para a recente saída de Adelar Pretto do quadro societário da empresa. A empresa não respondeu ao questionamento em específico. A reportagem não conseguiu localizar o coordenador estadual do MST.
Cooperativa fechou recentemente dois contratos milionários sem licitação
A cooperativa Terra Livre já recebeu, no total, R$ 7,98 milhões de recursos federais, em especial do Exército e de instituições de ensino federais. A maioria dos repasses tem dispensa de licitação.
Entre 2022 e 2023, a entidade fechou dois contratos milionários sem licitação – uma delas sob a justificativa de “inexigibilidade” e a outra de “dispensa” de licitação. O primeiro, firmado em janeiro do ano passado com o Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG), é da ordem de R$ 1,1 milhão. No Portal da Transparência, o recurso consta como “inexigibilidade de licitação”.
A lei 14.133/2021, conhecida como Nova Lei de Licitações, prevê que o mecanismo pode ser inexigível quando não existem concorrentes o suficiente no mercado ou quando os itens a serem adquiridos só são oferecidos por uma empresa ou fornecedor. No entanto, no caso em específico o Cefet-MG adquiriu produtos tradicionais da cesta básica. Foram de 9 mil kits com itens de alimentação.
A reportagem contatou o órgão, vinculado ao Ministério da Educação, e solicitou mais esclarecimentos sobre a inexigibilidade de licitação aplicada no caso. Até o fechamento desta reportagem não houve retorno.
Já em março deste ano, o Comando do Exército firmou contrato no valor de quase R$ 1,2 milhão para o fornecimento de leite e queijo durante um ano para atendimento a militares de Santa Maria e Itaara, no Rio Grande do Sul. A dispensa de licitação pode ocorrer em casos pontuais, já determinados por lei, nos quais não caberiam toda a burocracia do processo de licitação. Alguns desses casos são contratações de pequenos valores e situações de emergência, como guerras, calamidade pública e obras para evitar desabamentos. Há, no entanto, outras hipóteses em que ela pode ocorrer, como é o caso da aquisição de alimentos perecíveis.
À reportagem, a assessoria do Exército explicou que as circunstâncias da compra têm a ver com o decreto federal 10.880/2021, que prevê a dispensa de licitação na aquisição de alimentos da agricultura familiar – categoria na qual as cooperativas do MST se encaixam. A assessoria informou também que a compra buscou atender ao decreto 8.473/2015, assinado pela então presidente Dilma Rousseff (PT), que obriga órgãos públicos a adquirirem um percentual mínimo de produtos alimentícios dessas cooperativas.
Justamente de olho nessa brecha, a Terra Livre adquiriu os carros com o repasse do governo a fim de, segundo nota da cooperativa, aumentar o volume de visitas a “prefeituras, Exército, escolas estaduais e demais entidades” e, consequentemente, aumentar os lucros. A Gazeta do Povo atualizará esta reportagem caso o Ministério da Agricultura aponte qual seria, concretamente, o interesse público relacionado ao repasse.
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