No início do quinto mês da gestação, ainda dentro do útero da mãe, Jhully Rafaelly media cerca de 17 centímetros, mas já tinha um coração poderoso. O pequeno órgão batia cerca de 160 vezes por minuto e seu som foi capaz de fazer a mãe abandonar o crack, sair das ruas e desejar um novo começo. “Eu só queria usar droga. Eu não queria ter [o bebê], não estava nem aí para o pré-natal. Quando ouvi o coração [da filha], comecei a chorar. Ali eu disse: ‘Ninguém vai tirar essa criança de mim. Vou fazer por ela o que não fiz pelos outros [filhos]’”, conta Priscila Aparecida de Paula Santos.

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Priscila morava nas ruas, para onde havia sido arrastada por uma dependência química severa. Foi encontrada e atendida por uma equipe do Consultório na Rua – programa do governo federal, implantado pela prefeitura de Curitiba. Foi logo na primeira consulta, feita em plena rua, que a gestante pôde escutar os batimentos cardíacos da filha. Jhully Rafaelly nasceu saudável no dia 21 de dezembro de 2016, resgatando as esperanças da mãe de levar uma vida longe do crack.

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Só em Curitiba, casos como o Priscila – de grávidas que lutam contra a dependência em plena gestação – contam-se às dezenas em cada ano. Desde que o programa Consultório na Rua foi implantado há três anos e meio, 61 delas foram atendidas pelas equipes, das quais mais da metade – 32 mulheres – foram acompanhadas do pré-natal ao parto. Mais do que isso, foram estimuladas a comparecerem nas consultas e a se manterem longe dos entorpecentes. Priscila está internada na comunidade terapêutica, onde permanece há três meses longe dos entorpecentes

“A gente tenta ao máximo sensibilizá-las a fazer o pré-natal, a aderir ao programa. A maioria delas está em condição de extrema vulnerabilidade, já perdeu vínculo com a família. No pós-cirúrgico, mesmo, a única visita que recebem é da equipe”, aponta a psicóloga Adriane Wollmann, coordenadora do Consultório na Rua. “Quem está na rua precisa de um motivo para sair. Às vezes, o filho acaba sendo este motivo”, completa.

Riscos

Nem todas as gestantes, no entanto, conseguem parar. Apesar estar no quarto mês de uma gravidez cheia de sobressaltos, Andréia* não é capaz de abandonar o cachimbo nem para conversar com a reportagem. Nos arredores do viaduto do Capanema, onde vive, continua a fumar o crack que lhe chega às mãos. Não sabe quem é o pai do bebê que carrega em seu ventre e admite que chegou a fazer programas mesmo após se saber grávida. O uso de drogas começou a lhe provocar vômitos, mas ela não dá conta de parar.

“É um inferno. Eu quero parar, mas não consigo. É [sic] dez, vinte pedras por dia. Não dá, não dá”, murmura a mulher, que permanecia na rua.

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Em dupla condição de vulnerabilidade – pela situação de rua e pela dependência química – essas gestações são consideradas de risco para a mãe e para o bebê. Das grávidas acompanhadas pelo Consultório na Rua, 12 sofreram abortos espontâneos, todos relacionados ao abuso do uso de drogas ou de álcool. Por isso, quando as equipes conseguem acompanhar as gestações até o final, comemoram cada nascimento.

“A gente considera que salvou uma vida”, orgulha-se a enfermeira Karla Schneider.

Além de aumentar as chances de óbitos, o consumo de drogas por parte da gestante pode legar uma série de sequelas às crianças, como doenças neurológicas, insuficiência respiratória e retardo de crescimento. Ademais, as doenças contraídas pela mãe – como sífilis e HIV – podem ser transmitidas diretamente ao bebê. “Por isso, o pré-natal é importantíssimo. É ele que vai detectar várias situações, que vai garantir os cuidados ideais até o nascimento do bebê”, ressalta a médica Kaline Pockrandt. “São gestações de altíssimo risco”, acrescenta.

*nomes fictícios

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Gestantes dependentes de crack não são mães de primeira viagem

Márcia* não mudou sua rotina por causa de sua última gestação, em 2014. Mesmo com o bebê prestes a nascer, passava parte do dia catando materiais recicláveis com o companheiro, para, em seguida, comprar crack e consumi-lo em um barraco que improvisaram no alto de um barranco, no Hauer. O barrigão não lhe era novidade: estava grávida pela oitava vez. No fim de uma tarde, chegou ao parceiro e disse: “Vai lá no barranco, que tem uma bola”. Chegando ao local indicado, o companheiro se deparou com o bebê que havia acabado de nascer de forma natural. Márcia* pariu sozinha, sem acompanhamento.

“Nenhuma das oito crianças estão com eles. Todas foram encaminhadas à adoção. Hoje, ela [Márcia*] toma injeções de contraceptivos”, conta a enfermeira Karla Schneider, do programa Consultório na Rua. “O que nós vemos são mulheres que já têm filhos, em alguns casos, 8 ou 10 filhos, e que na maioria dos casos não foi uma gravidez planejada”, aponta a enfermeira Juciane Krambeck.

Foi assim com Priscila Aparecida de Paula Santos, de 24 anos, que está na quinta gestação, nenhuma das quais foi desejada. Hoje, ela está internada em uma comunidade terapêutica e afastada das drogas há três meses. Mas ao longo da terceira e quarta gestações continuou usando crack diariamente. “Eu acabava brigando com a minha mãe, a gente não se dava muito bem. Então, eu acabava descontando tudo na droga”, disse.

Janaína*, de 26 anos, tem três filhos. Em sua última gravidez, foi internada em um hospital psiquiátrico por intermédio do Consultório na Rua. Na 42ª semana de gestação, ela recebeu alta e foi para a casa da mãe, no Hauer. Mesmo em vias de dar a luz, não resistiu ao crack. “Com aquele barrigão, ela pulou o portão e passou a noite usando [crack]. No dia seguinte, amanheceu dormindo na calçada aqui em frente”, conta a mãe dela, Maria Aparecida Nascimento, de 58 anos.

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