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Risco

Gravidez na idade da pedra

Andressa (nome fictício) engravidou quando estava sob o efeito do crack. A filha mora com avós e ela luta contra o vício | Hedeson Alves/ Gazeta do Povo
Andressa (nome fictício) engravidou quando estava sob o efeito do crack. A filha mora com avós e ela luta contra o vício (Foto: Hedeson Alves/ Gazeta do Povo)

O número de gestantes usuárias de crack é desconhecido. A informação não é um registro obrigatório nos hospitais; quando existe, fica no prontuário da paciente, com acesso restrito a ela e à família. De dez maternidades consultadas em Curitiba, só três repassaram dados sobre o assunto à Gazeta do Povo. No primeiro semestre deste ano, o Hospital Evangélico, o Hos­pital do Trabalhador e a Maternida­de Victor Ferreira do Amaral totalizaram 52 casos. Situação semelhante ocorreu em Porto Alegre em 2009, quando um levantamento em quatro das principais maternidades da cidade indicou 117 partos de usuárias de crack em cerca de um mês. É como se a cada três dias um bebê vítima da droga nascesse na capital gaúcha.O coordenador de Gestão de Al­­to Risco do Hospital Presidente Var­­gas, em Porto Alegre, André Cam­­­­pos da Cunha, e a coordenado­ra da UTI Neonatal, Cristina Vi­­ves, dizem que os dados em relação ao uso e aos efeitos do crack na gestação são escassos. Mas, com base em estudos disponíveis no exterior, afir­­mam que em média 3% das mu­­lheres usam alguma droga ilícita durante a gravidez. Segundo eles, cerca de 30% das mulheres preferem suspender o uso no primeiro trimestre da gravidez e 93% durante o terceiro trimestre. De­­pois do parto, é grande o número de mulheres que voltam a usar a dro­­ga. Segundo o National House­hold Survey on Drug Abuse, dos Estados Unidos, a faixa etária mais jovem (de 18 a 30 anos), a au­­sência de um parceiro fixo e níveis de escolaridade baixos aumentam o risco de uso de drogas na gestação.

Luta difícil

Nas clínicas e comunidades terapêuticas de Curitiba, as gestantes que usam crack são um público cada vez mais frequente, mas que procuram as instituições há pelo menos cinco anos. Na Casa de Re­­cuperação Água da Vida (Cravi), com atendimento particular e por convênios públicos, cerca de 20 gestantes deram entrada de 2009 para cá. "A maioria vem procurar ajuda depois, quando já fez o uso durante a gestação", lamenta a psicóloga Rafaela Di Lascio Rosendo.

É o caso de Andressa*, 29 anos, que está internada há quatro me­­ses na unidade feminina depois de oito meses desaparecida. Há três anos, em um momento de uso da droga, ela engravidou. Não sabe quem é o pai e não lembra de co­­mo aconteceu. Constrangida, diz à família que não quer contar. Ten­tou se controlar durante a gestação, mas acabou cedendo. Geral­mente esses lapsos começavam com a ingestão de bebida alcoólica. "A bebida me puxava para o crack. Hoje tenho plena consciência dessa associação", admite. A filha, ho­­je com 3 anos, vive com os avós. A voz de Andressa quase some quando fala da filha. "A culpa é um dos sentimentos mais fortes nessas mães. Boa parte delas acaba doando os bebês, que chamam de criança do crack", diz Rafaela.

Negação

Ao contrário de Andressa, que está ciente da luta que tem pela frente, Sônia*, 40 anos, ainda está na fase da negação. É mãe de duas meninas, de 15 e 5 anos. A primeira foi gerada depois de ela usar cocaína, maconha e álcool. O pai também era usuário. A segunda, com o crack. Sônia diz que "deu sorte" e que as filhas são "normais". Mas, se­­gundo as psicólogas da Cravi, a mais velha tem um cisto sobre o ner­­vo ótico que mantém a pálpebra de um dos olhos fechada o tempo todo – problema que pode ter sido causado pelo uso de drogas. A pequena, aparentemente, não tem nada. "Mas é cedo para dizer", adverte a psicóloga Caroline Fer­­nanda Rocha.

Sônia está há pouco mais de um mês na instituição. Estava em tratamento no início do ano, mas fu­­giu no Dia das Mães. Brigou com o padrasto, agrediu a mãe e foi agressiva com a filha mais nova. Uma ordem judicial impede que Sônia se aproxime dela.

Tanto Andressa quanto Sônia estão tentando reatar os laços com a família e a vida social, mas quando deixarem o tratamento o básico continuará faltando: uma casa, um emprego e boas companhias. Fatores com os quais terão de lutar para se manterem longe do crack.

Cérebro e fígado do bebê são os mais afetados

Quando inalado pela gestante, o crack atinge o cérebro do feto e tende a matar os neurônios. Os detritos presentes na droga entram no pulmão e o que é absorvido pelo sangue percorre o corpo inteiro. Assim, o cérebro e o fígado são mais afetados. O cérebro recebe os estímulos e o fígado fica responsável por limpar as impurezas do sangue. "Com o acúmulo de detritos dá uma sobrecarga", diz o psiquiatra José Leão de Carvalho Júnior, da Clínica Nova Esperança.

Tanto o peso quanto o comprimento do bebê são afetados pela cocaína, segundo estudo do psiquiatra Sandro Sendin Mitsuhiro, da Universidade Federal de São Paulo. Das mil gestantes entre 11 e 19 anos acompanhadas por Mitsuhiro em 2006, cerca de 6% fizeram uso de drogas na gravidez.

Aos 7 anos, as crianças apresentam duas vezes mais chances de ficar abaixo da porcentagem de 10% na curva de crescimento. Logo após o nascimento podem ser observados tremores, irritabilidade e agitação psicomotora. Nos três primeiros dias após o parto pode haver síndrome de abstinência. Os principais sintomas são sucção deficiente, irritabilidade, hipertonia, bocejos e espirros. O comprometimento neurológico, comportamental e de aprendizado aparece depois dos 3 anos. A pesquisa aponta que o uso médio de sete pedras por semana durante a gravidez provoca um risco maior de retardo mental aos 2 anos de idade.

Durante a gestação a cocaína inibe a recaptação de substâncias como dopamina, norepinefrina e serotonina, causando eu­­foria. A ação periférica cardiovascular (vasoconstrição, hipertensão e taquicardia) gera efeitos adversos durante a gestação e os primeiros dias após o nascimento.

A atividade da colinesterase, enzima que metaboliza a cocaína, é menor na gravidez. Isso aumenta o tempo em que a substância fica no corpo. O descolamento prematuro de placenta e o trabalho de parto prematuro são as consequên­cias mais comuns.

* Nomes fictícios.

Leia até quinta-feira na Gazeta do Povo a continuidade desta série de reportagens sobre cada um dos perfis de usuários do crack.

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