No Dia do Índio deste ano, 19 de abril, uma comitiva de indígenas da etnia Munduruku se deslocou do Alto Tapajós, no sudoeste do Pará, até Brasília, para apresentar às autoridades suas reivindicações nas tradicionais comemorações da efeméride. O grupo, porém, teve dificuldades para ser recebido pelos órgãos governamentais. O motivo? Quatro dias antes, o Ministério Público Federal do Pará (MPF) enviou um pedido a órgãos do governo para que não os recebessem justificando que eles não representavam a totalidade dos Munduruku e que seriam financiados por empresários. Caso os órgãos descumprissem a recomendação, o MPF ameaçou “adotar as medidas judiciais cabíveis”.
A nota do MPF, enviada no dia 15 de abril à Fundação Nacional do Índio (Funai), à Agência Nacional de Mineração (ANM), ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e secretarias executivas de ministérios elencou diversas questões como justificativas para que os integrantes da Associação Indígena Pusuru, que organizou a comitiva a Brasília, não fossem recebidos e voltassem para suas terras.
Uma dos pontos seria o interesse de “empresários ocultos”. Eles teriam cooptado e financiado a viagem dos indígenas com o objetivo de promover mineração com maquinário pesado dentro das terras Munduruku. E também que as decisões do povo Munduruku apenas são tomadas em assembleia geral, por meio do chamado Protocolo de Consulta Prévia, Livre e Informada, e não por associações.
Além disso, o MPF citou na recomendação que a comitiva representava riscos de contaminação de Covid-19 nas aldeias, algo que o órgão informou à reportagem não ter feito aos diversos outros grupos indígenas que se deslocaram à capital naquele dia e foi exclusivo aos Munduruku.
À Gazeta do Povo, o MPF disse que não irá revelar o nome dos empresários que acusou estarem financiando a comitiva dos Munduruku, pois seriam referentes a investigações que tramitam sob sigilo.
A espiral do silêncio
O advogado Ubiratan de Souza Maia, que representa a Associação Pusuru, contesta as acusações do MPF. Para ele, o órgão age nessa questão com motivação político-ideológica, fazendo com que esse grupo indígena seja colocado numa espécie de “espiral do silêncio”. Na opinião de Maia, essa atitude revela um caráter preconceituoso de pessoas envolvidas em instituições que não admitem que indígenas possam divergir de sua visão de mundo.
“Não cabe ao MPF dizer quem a associação representa ou não representa. O MPF falseia a realidade, para que esse grupo esmoreça e seja desmoralizado. Para que a pauta deles não seja sequer analisada. É uma gente cínica”, acusa Maia, que também é indígena e pertence à etnia Wapichana, de Roraima.
O advogado também explica que as pautas levadas pelos Munduruku eram diversas – como o aumento de verbas para a saúde indígena e a construção e reforma de escolas – e não estavam restritas à questão da mineração. E mesmo que fossem, explica o representante legal da Associação Pusuru, os indígenas não deveriam ser silenciados.
Divisão entre indígenas
Com 147 aldeias espalhadas por um território rico em minérios, as terras do povo Munduruku são palco de constante disputa e conflitos entre indígenas e garimpeiros. Mas agora os próprios Munduruku estão divididos: uma parte vê com bons olhos o Projeto de Lei (PL) 191/2020 apresentado ao Congresso pelo governo de Jair Bolsonaro, que objetiva legalizar e regulamentar a mineração e o garimpo em Terras Indígenas. Os indígenas justificam que a atividade já é realizada pelos próprios Munduruku há várias décadas e que a regulamentação reduzirá os danos, trazendo mais segurança para a atividade.
A outra parte, entretanto, vê a atividade com apreensão e denuncia que grandes maquinários são muito mais prejudiciais para o meio ambiente do que os métodos mais tradicionais de garimpo. Essa parcela, que é representada por ONGs como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e o Instituto Socioambiental (ISA), acusa os garimpeiros de estarem manipulando seus parentes indígenas para atingirem seus objetivos. Algo que também é apontado pelo MPF.
Recentemente, o MPF trabalhou em uma campanha para captação de recursos para a reconstrução da Associação de Mulheres Munduruku Wakoborũn, que foi supostamente atacada por garimpeiros no final do ano passado.
O indígena Francenildo Kaba Munduruku, de 38 anos, presidente da Associação Indígena Pusuru e líder da comitiva, acredita que os procuradores do Ministério Público Federal agem de forma política e comprometidos com “ideologias ecossocialistas”. Ele explica que o seu povo quer explorar as suas riquezas de forma legal e sustentável e não admite mais que os indígenas vivam em miséria em uma terra com tantas riquezas.
“A terra é nossa e não vamos mais admitir a intervenção de quem quer que seja, muito menos das ONGs e do MPF. Chega de sermos manipulados por 'ongueiros' que só querem nos usar como cobaias ou escudos humanos contra o nosso próprio desenvolvimento”, afirma Kaba Munduruku.
Ele explica que, ao contrário do que foi denunciado pelo MPF, ele não trabalha na atividade garimpeira, mas que não se opõe aos seus parentes que atuam nessa área. E afirma também que não houve patrocínio de grandes empresários, parte da receita para a viagem teria origem em doações de indígenas Munduruku que trabalham com a mineração.
Kaba Munduruku acrescenta que não se deixará intimidar e que continuará a buscar os seus direitos. “Tudo o que tentaram me impedir junto dos meus guerreiros e da minha liderança eu vou denunciar. Eu vou correr atrás dos meus direitos. Eu não vou ficar parado e não vou calar a minha boca”.
Uma fonte na Funai, que não quis se identificar por medo de retaliações, informou que é impossível quantificar quem é a maioria na questão Munduruku. Isso porque o monitoramento público do censo indígena - que era realizado por meio do Sistema Integrado de Atenção à Saúde Indígena (SIASI), baseado nas informações registradas nas campanhas de vacinação contra a gripe H1N1 - foi interrompido em 2012. Até mesmo a quantidade de indígenas pertencentes à etnia é incerta.
Além disso, a mesma fonte explica que o Protocolo de Consulta Prévia, Livre e Informada Munduruku não é um objeto jurídico consolidado e demanda um esforço conjunto dos órgãos públicos competentes para ser elaborado. Com a consolidação de mecanismos legais para ampla participação e protagonismo do próprio povo indígena envolvido.
“Ele não pode ser resumido a um ativismo jurídico do MPF ou de militantes de Organizações Não-Governamentais, que muitas vezes avocam para si o direito de representarem essas comunidades. Além disso, de maneira alguma um Protocolo de Consulta impede que órgãos públicos promovam a oitiva e recebam as demandas de qualquer parcela da referida população indígena”, finaliza a fonte.
Em Brasília
Em Brasília, os indígenas Munduruku fizeram manifestações na Praça dos Três Poderes, levaram cartazes e gritaram palavras de ordem contra as ONGs e o MPF. Nos dias em que estiveram na capital, eles procuraram falar com diversos órgãos do governo. No dia 22, o grupo foi recebido pela assessoria da Comissão do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, que é presidida pela deputada Carla Zambelli (PSL), e apresentou as suas reivindicações.
À reportagem, a assessoria do CMADS informou que, embora a recomendação do MPF tenha sido apenas para órgãos do Executivo, a comissão tem por premissa receber todos os setores da sociedade que tiverem temas relacionados aos assuntos tratados pela comissão e que entende que nenhuma comissão da Câmara dos Deputados pode deixar de receber ou escutar qualquer cidadão.
O antropólogo Edward Luz, que tem assessorado os Munduruku em sua busca pela legalização da atividade minerária e intermediou a reunião no CMADS, explica que os indígenas ficaram muito interessados no Projeto de Lei 1443/2021, de autoria de Carla Zambelli, que trata da liberdade econômica indígena a fim de garantir a autonomia das comunidades na gestão e uso de suas terras e patrimônio.
Para ele, ao contrário do que diz o MPF, os Munduruku não foram manipulados pelos garimpeiros. "Sabiam bem o que queriam, e foram eles que firmaram alianças com tradicionais parceiros mineradores para irem à busca da sua legalização e de outras importantes agendas em Brasília para serem ouvidos pelas autoridades", disse o antropólogo.
A Funai em um primeiro momento negou ter recebido os Munduruku. Após novas solicitações, o órgão informou que o então assessor da presidência, Cláudio Badaró, recebeu os indígenas na sede da Funai no dia 20 de abril, sem agendamento prévio. Perguntado sobre o porquê de a recomendação do MPF não ter sido seguida, a Funai se limitou a dizer que não comenta assuntos relativos a outras instituições e que atua estritamente segundo suas atribuições regimentais.
O assessor Cláudio Badaró, que foi exonerado do cargo na semana seguinte da reunião, disse que não irá comentar sobre o caso. Em 2020, o MPF fez uma recomendação para a demissão de Badaró por supostamente não ser qualificado para o cargo.
A Associação de Mulheres Munduruku Wakoborũn respondeu que não tem mais nada a dizer sobre o assunto além de uma carta publicada no dia 26 de abril.
O Cimi não deu retorno aos contatos da reportagem.
Solicitação do MPF ao Ministério da Justiça
Em 11 de maio, o MPF do Pará solicitou ao Ministério da Justiça e Segurança Pública que envie equipes policiais para Jacareacanga, no Pará. O órgão avalia que pode se repetir com os Munduruku os episódios de violência ocorridos na última segunda-feira (10) em território indígena Yanomami, em Roraima, onde três garimpeiros morreram em troca de tiros com indígenas.
Novamente, o MPF recomendou que autoridades não se reunissem com os indígenas Munduruku da associação Pusuru, acusando-a de ser ilegítima, e ameaçou a Funai, pois o órgão confirmou presença em um evento na associação. “O MPF registra que a atuação da Funai contrária à autorização dos caciques e em um cenário de iminente violência pode acarretar responsabilização penal, civil e administrativa dos envolvidos”.
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