As travestis e transexuais são habitantes de um Brasil desconhecido. Formam uma conta de menos. Não se sabe ao certo quantas são, como vivem e tampouco do que morrem. Restam apenas três certezas: 1) a população trans está ausente das salas de aula; 2) impera o mito de que só quem fez cirurgia de adequação sexual pode mudar de nome; 3) desses dois erros demandam todos os outros. "É uma tragédia particular", resumem os observadores, ao afirmar que a "transfobia escolar" termo usado para traduzir a máquina de excluir trans no sistema de ensino atira gerações de jovens na violência, na exploração sexual e no vazio profissional.
Tão assustador quanto admitir que existe um mecanismo assim é concluir que uma medida simples poderia mudar o final da história: respeitar o "nome social" na lista de chamada. É discussão antiga. Tem suas raízes na década de 1970, mas engrenou há 15 anos. Nesse tempo, mereceu discussões acaloradas, uma dezena de pareceres e até uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), movida em 2009 por grupos de gênero. A bandeira desses manifestantes ultrapassa o debate do "nome social" e põe a mão noutro vespeiro, cujo desenlace não será visto tão cedo: a burocracia para conseguir a mudança do nome civil.
Mesmo com tanta pressão popular, não passa um dia sem que um professor se recuse a chamar meninos e meninas pelo nome com o qual se enxergam, ignorando haver uma equação direta entre desrespeito à identidade e evasão escolar. Mesmo quando o direito acata "a pele que essas pessoas habitam", a educação continua dizendo não. "Existe a supremacia dos direitos humanos. A ONU afirma a igualdade de gênero e mesmo assim, acontece", protesta o deputado federal Angelo Vanhoni (PT-PR), que em abril passado enfrentou derrota na Câmara ao ter de esmiuçar a questão no Plano Nacional de Educação, o PNE. (veja infográfico)
Defesa
As escolas se defendem. Alegam observância ao que está escrito na matrícula. Risco de processo administrativo. Argumentam que os alunos não fizeram a adequação sexual cirúrgica. O que ignoram? Que não é a cirurgia que concede à pessoa a condição transexual. Que com essa resistência estão abrindo as portas da escola para que os alunos trans saiam e não voltem mais, expondo-os ao pior dos mundos. "As pessoas transferiram as crenças pessoais para os espaços públicos, esse é o problema", resume a psicanalista e pesquisadora de gênero Letícia Lanz.
Os poucos dados disponíveis sobre o assunto são contundentes. Das 70 pessoas que usam os serviços do recém-criado Centro de Pesquisa e Atendimento para Travestis e Transexuais, o Cepatt, na antiga Saúde Pública, em Curitiba, quase 100% reclamam de conflitos relacionados ao uso do "nome social". O problema não poupa nem as faculdades, nas quais as trans se fazem cada vez mais presente. O que os reclamantes relatam beira o horror, em especial quando a resistência em "chamar pelo nome" atinge os adolescentes.
"Temos relatos de alunos transexuais que enfrentam problemas urinários. Não há banheiros para eles. E muitos sofrem com os professores. Houve quem chamasse uma aluna trans de lixo", relata o ativista e doutor em Educação Toni Reis, que se debruçou sobre cinco casos envolvendo menores de 18 anos, em cinco cidades paranaenses diferentes, e levou os casos ao Ministério Público.
Embate
Reis não foi sozinho para a briga. Levou junto a ALGBT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), o Grupo Dignidade e o Transgrupo Marcela Prado, os dois últimos com sede na capital. Os manifestantes saíram vitoriosos do corpo-a-corpo. No início de junho, o Centro de Atenção à Criança e Adolescente e o de Educação lançaram um parecer, desde já histórico, sobre o uso do "nome social".
"É o documento mais completo já publicado no Brasil", garante o ativista, sobre o texto de 14 páginas. Se for aceito sem reservas pelo Conselho Estadual de Educação no qual uma comissão especial estuda a orientação estudantes com mais de 18 anos podem pedir por si só o uso do "nome social". Entre 16 e 18 anos, o interessado solicita o nome, desde que tenha documento assinado pelos pais. Se tiver menos de 16, os pais têm de requerer.
Até então, o MP se mostrava reticente em recomendar o uso do "nome social" para adolescentes. Entendia que nessa fase a sexualidade não estaria formada. Para fazer os promotores Murillo Digiácomo e Hirmínia Dorigan de Matos Diniz reverem seus conceitos, o movimento social relatou histórias de meninos e meninas trans apartados da escola. Mostrou-se a "violência simbólica", como diz Letícia Lanz, a que estão expostos os "sem-banheiro" e "sem-chamada". "A escola só está preparada pra lidar com rígidas divisões de gênero homem e mulher", reforça a pesquisadora.
Estigmas ainda impedem os direitos trans
O respeito ao "nome social" funciona como um antídoto. Se os educadores assumem o aluno por primeiro, neutralizam o bullying, um mal que fatalmente assalta o adolescente trans. Se for difícil, há outro exercício universal: colocar-se no lugar de quem pede ser chamado por esse ou aquele nome. Uma trans já tem de devassar sua intimidade na frente dos outros a cada vez que vai pagar uma conta com cheque ou cartão de crédito.Descobrir que a escola repete a mesma prática é um motivo forte o bastante para abandoná-la.
É o que acontece na maioria das vezes, embora essa afirmação seja empírica. O Censo de 2010 quantificou também as variantes de sexualidade. Levantou o número de uniões homoafetivas 60 mil casais. Mas caiu num erro comum. De forma indireta tornou a entender a população trans como parte da parcela que se declara homossexual. Colocou dois grupos diferentes debaixo do mesmo guarda-chuva, fazendo o que os especialistas consideram uma simplificação grosseira. Homo e trans não são sinônimos.
Para além das razões simbólicas e científicas, há uma razão prática. Um aluno que se identifica como homossexual não vive o conflito do nome ou da aparência. O mesmo não se pode dizer do estudante trans, em especial quando já iniciou a reconstrução do corpo, com tratamento de hormônios. Não há estudos seguros, mas é o momento do abandono escolar, gerando o efeito cascata: sem estudos, sem profissão, resta a exploração sexual e a prostituição.
Um dos mitos que pesa sobre a população trans é a de ser lasciva, hipersexualizada. É um estigma o que o grupo pede, via movimento social, contraria essa imagem: quer usar o banheiro adequado, "nome social" e ter condições mínimas de continuar os estudos.