Putin, atual presidente, é acusado de ajudar Trump na eleição americana. Em 1996, era Yeltsin quem contava com ajuda dos EUA para se eleger na Rússia.| Foto: jt/sd/jpr/-

Em retrospecto agora, havia uma bela dose de ironia na capa da revista Time de 15 de julho de 1996.

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Ela representa o ex-presidente russo Boris Yeltsin, à época recém-reeleito, sorrindo e agarrando uma bandeira dos EUA sob a manchete “Ianques ao Resgate!”. A matéria fala de um grupo de consultores políticos de alto escalão que haviam sido levados em segredo à Rússia em meio às acirradas eleições presidenciais russas de 1996, em que Yeltsin, na defensiva, se debatia para tentar se recuperar dos seus índices de aprovação, abaixo dos 10%, e vencer seu oponente comunista.

Os consultores ficaram escondidos numa suíte de hotel em Moscou para que nenhuma indicação de sua presença – e da mão aparente dos EUA na política russa – chegasse ao eleitorado. Eles aconselharam a equipe de Yeltsin quanto às táticas e tecnologias das campanhas políticas modernas e ajudaram a assegurar sua vitória no final.

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“Ianques ao resgate”, capa da Time de 1996. 

A julgar pelo tom da matéria da Time, poucos nos EUA à época pareciam duvidar que o envolvimento norte-americano na disputa pelo cargo mais alto do governo russo era basicamente uma boa notícia. De fato, uma enquete conduzida com regularidade pelo Centro Levada, um instituto independente em Moscou, relatou que, no ano seguinte à eleição, assombrosos 72% dos russos tinham uma atitude “positiva” quanto aos EUA, contra apenas 18% que tinham uma visão “negativa” do país.

Esse episódio, que já tem mais de 20 anos, não pode ser comparado diretamente ao furor atual quanto à suposta interferência russa na eleição presidencial dos EUA. Mas os dois eventos e sua completa virada de 180º – incluindo os dois terços dos russos que hoje expressam uma visão negativa dos EUA, segundo o Levada – são o começo e o fim da morte épica do caso de amor da Rússia com os EUA. Muito disso pode parecer inevitável em retrospectiva, mas alguns russos comentam que essa relação seria muito mais saudável hoje se os norte-americanos não tivessem tentado “ajudar” os russos em sua luta com o colapso do próprio país e sua transformação dolorosa.

Na situação imediatamente após a queda do governo soviético, a atitude dos russos em relação aos EUA estava no seu auge. E mesmo isso não era uma mudança muito grande quanto à era soviética.

“O que me chocou em 1952, em plena Guerra Fria, foi que havia pouquíssimo antiamericanismo real lá”, diz Vladimir Posner, uma lenda da radiodifusão russa, sobre o ano em que se mudou dos EUA para Moscou, onde mora desde então. “É claro que as pessoas achavam que Wall Street e os líderes dos EUA eram os culpados por tudo de ruim que acontecesse”, como sugeria a propaganda russa, “mas ninguém falava mal dos americanos em geral. Já perdi a conta de quantas vezes ouvi, ao longo dos anos, os russos dizerem que os nossos dois países são os maiores do mundo e que, se eles unissem forças, poderiam resolver todos os problemas”.

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“A ideia geral na Rússia à época era que todos sairíamos ganhando com o fim da Guerra Fria, que deveríamos ser parceiros”, diz Nikolai Petrov, cientista político que trabalhou como assessor no parlamento russo no começo da década de 90. Ele diz que sabia que Moscou estava cheia de consultores norte-americanos de todos os tipos naquela época, mas enxergava a cooperação como sendo primariamente positiva. Até mesmo as notícias de que havia consultores americanos trabalhando em segredo para a reeleição de Yeltsin “não pareceu grande problema para mim à época”, ele diz.

Nos EUA, a administração Clinton dava a impressão de oferecer apoio incondicional a Yeltsin – apesar das provas cada vez mais fortes de que milhões de russos estavam se sentindo desgostosos com as dolorosas reformas econômicas que, para eles, cada vez mais eram sinônimo da democracia em estilo ocidental.

Depois, quando o colapso econômico e social da Rússia por fim atingiu um clímax no final da década de 90, ele foi associado intimamente a Yeltsin e ao que é visto, em retrospecto, como uma fé ingênua na amizade com os EUA em geral. “O sentimento agora é de que os anos 90 foram a época em que perdemos todas as nossas conexões com a grandeza e que a nossa queda contou com a ajuda e investimento do envolvimento dos EUA. As pessoas se sentem enganadas”, diz Petrov.

Até mesmo o último líder soviético, Mikhail Gorbachev, que pôs fim à Guerra Fria e apostou tudo numa nova ordem mundial baseada na cooperação com o Ocidente, sofreu uma desilusão profunda. Seu tradutor pessoal de longa data, Pavel Palazhchenko, diz que Gorbachev voluntariamente concordou em desmanchar a aliança militar do Pacto de Varsóvia, liderada pelos soviéticos, e aceitou a reunificação da Alemanha por compreender que uma nova arquitetura da segurança da Europa incluiria a Rússia como um parceiro de igual para igual.

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Mais tarde, porém, apesar de já ter saído do poder, Gorbachev assistiu espantado enquanto o Ocidente expandiu a OTAN até invadir a esfera até então soviética, realizando ações unilaterais para regular a divisão da Iugoslávia.

“Havia muita boa vontade, mas parece que muitas ilusões também”, diz Palazhchenko, que agora trabalha na Fundação Gorbachev, em Moscou. “Parte disso era bobagem, simplesmente. As pessoas à época achavam que os EUA eram um tipo de paraíso e uma força pura da bondade no mundo. Uma hora o pêndulo ia voltar para o lado oposto...

“Mas Gorbachev se desiludiu não por conta de quaisquer promessas específicas que possam ter sido quebradas, mas porque foi violado o espírito daquilo que havia sido discutido com os líderes dos EUA. Hoje, sentimos o fracasso em projetar um novo sistema de segurança para a Europa que tivesse uma diplomacia preventiva forte para lidar com os problemas que surgiram desde então, como a Geórgia e a Ucrânia”, diz ele.

Rompimento

Apesar de o russo médio ter sentido os anos 90 como uma época de privação econômica, incluindo uma quebra financeira em 1998, o Kremlin começou a romper bruscamente com a liderança global dos EUA quando a OTAN lançou uma guerra aérea que durou 78 dias contra o seu aliado iugoslavo por conta da enclave albanesa no Kosovo em 1999. O então primeiro ministro russo Yevgeny Primakov, a caminho de uma visita oficial nos EUA, teve que dar meia volta em seu avião em pleno ar quando começaram os bombardeios.

“Havíamos todos já rejeitado a perspectiva das propagandas russas de que os EUA eram um estado agressor, mas agora isso parecia ser realidade”, diz Alexei Makarkin, vice-diretor do Centro de Tecnologia Política, um instituto de Moscou. “O que os EUA acreditavam ser uma operação humanitária foi visto pelo público russo como uma agressão contra nossos irmãos sérvios”.

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Quando Vladimir Putin chegou ao poder, defendendo um estado russo mais forte e mais assertivo, a ideia de uma parceria Rússia-EUA já estava em frangalhos. Porém, até mesmo Putin tentou fortalecer esses laços, ligando para George W. Bush após os atentados de 11 de setembro para propor uma aliança entre Moscou e Washington no combate ao terrorismo.

À época, a Rússia estava no meio das suas investidas contra a república separatista da Chechênia – cujos líderes rebeldes haviam adotado o islamismo extremista. Mas muitos nos EUA se recusaram a reconhecer qualquer paralelo entre as duas situações, em parte por conta da brutalidade das forças russas usada na Chechênia.

“A Rússia queria formar uma parceria militar com os EUA e estava disposta a cooperar”, diz Gleb Pavlovsky, chefe da Fundação de Políticas Efetivas, um assessor próximo de Putin à época. “Mas não recebemos a resposta adequada dos americanos, e a oportunidade se perdeu. Depois eles invadiram o Iraque e perdemos toda a fé na ideia”.

A Rússia desfrutou de uma relativa bonança econômica na primeira década deste século, o que ajudou a fazer crescer a popularidade de Putin, que permanece ainda acima dos 80%. Mas a maioria dos especialistas acredita ser a postura desafiadora do Kremlin diante da ordem mundial americanizada e os esforços de Putin para restaurar o status do país como uma grande potência que mantêm a sua imagem impecável entre os russos, apesar da forte queda na economia dos últimos três anos.

“Eu não acho que a questão seja de forma alguma econômica”, diz Posner. “Os russos são um povo orgulhoso, e, para eles, um líder precisa responder aos seus sentimentos interiores. Eles enxergam em Putin alguém que defende a Rússia e que faz com que os EUA se deem conta que não podem nos tratar com leviandade”.

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Nos últimos anos, os EUA – ao lado de outros países ocidentais – vêm expressando uma preocupação profunda com os atos de repressão do Kremlin sobre a sociedade civil russa, com sua invasão e anexação da Crimeia, tomada da Ucrânia, seu apoio de rebeldes separatistas no leste da Ucrânia e, mais recentemente, com a suposta invasão, cometida por hackers russos, dos e-mails da Convenção Nacional do Partido Democrata e do presidente da campanha de Hillary Clinton, John Podesta. Porém, isso também alimentou o desencanto russo com os EUA.

“Sem ser grosseiro, Putin exprime a decepção generalizada que os russos sentem hoje pelos EUA e por tudo que o país faz e afirma com assertividade o lugar da Rússia no mundo”, diz Posner. “O caso de amor sempre foi meio unilateral e agora definitivamente já terminou”.