À esquerda, o político Paulo Maluf, que teve habeas corpus concedido pelo STF sob alegação de “precário estado de saúde”; à direita, o comerciante Cleriston Pereira da Cunha, que teve HC negado e morreu na Papuda
À esquerda, o político Paulo Maluf, que teve habeas corpus concedido pelo STF sob alegação de “precário estado de saúde”; à direita, o comerciante Cleriston Pereira da Cunha, que teve HC negado e morreu na Papuda| Foto: Foto Paulo Maluf: Luis Macedo/Câmara dos Deputados - Foto Cleriston: Reprodução/ Facebook
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Paulo Maluf, condenado por lavagem de dinheiro, já teve habeas corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para evitar sua prisão, assim como um executivo delatado por Alberto Youssef durante a Operação Lava Jato. No entanto, Daniel Silveira, Filipe Martins, Cleriston Pereira da Cunha — o “Clezão”, que morreu no Complexo Penitenciário da Papuda — e centenas de réus do 8 de janeiro não tiveram, sequer, acesso a esse remédio constitucional. 

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Em seu artigo 5º, a Constituição Federal estabelece proteção por meio de habeas corpus “sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. O Código de Processo Penal (CPP) repete essa lei, e menciona o HC como obrigação do juiz, desde que demonstrada violação à livre locomoção. 

Porém, “apesar de flagrantes ilegalidades, como réus presos por mais de um ano sem denúncia, mães de filhos menores, prisões de idosos e de pessoas com sérios problemas de saúde, o STF não aceita HC”, aponta a advogada Taniéli Telles de Camargo, que defende presos do 8/1 como a cabeleireira Débora Rodrigues, encarcerada há dois anos, longe dos filhos, por escrever a frase “Perdeu, Mané”, com batom, na estátua em frente ao STF.

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“Na prática, o que ocorre é que as decisões dos ministros isoladamente têm força maior que a própria Constituição, acima de todas as leis do nosso ordenamento jurídico”, aponta Ricardo Scheiffer Fernandes, advogado de Filipe Martins, ex-assessor de Bolsonaro que ficou seis meses preso devido a uma viagem que nunca existiu

“É muita ilegalidade, e isso se chama abuso de autoridade”, manifesta o advogado de Daniel Silveira, Paulo Faria, citando a Lei 13.869/19, que estabelece infrações penais cometidas por agentes públicos que se excedem no uso do poder. 

De acordo com ele, o ministro Alexandre de Moraes mandou prender Silveira novamente, na véspera de Natal de 2024, porque o homem foi a uma consulta médica de emergência sem pedir permissão. “Moraes pratica tortura contra Daniel Silveira”, disse, ao citar que já foram encaminhados inúmeros pedidos de habeas corpus ao STF nos três anos de meio em que o ex-deputado segue na prisão.

No último HC, a defesa solicitou que o ministro Luiz Fux reavaliasse a decisão que prendeu novamente Silveira, em dezembro. No entanto, Fux se recusou a examinar o pedido.  

STF nega HC com base em Súmula de 1984, anterior à Constituição 

“Decisão compatível com uma ordem democrática?”, questionou a consultora jurídica Kátia Magalhães, em sua página no X, após posicionamento do ministro Fux. “O supremo menosprezo pelo HC é atestado incontestável do nosso atual período autoritário”, avaliou, ao explicar que a proteção via habeas corpus é direito fundamental instituído pela Constituição de 1988, que “sequer pode ser eliminado via emenda”, diz. “É o mais antigo instrumento para assegurar a liberdade de ir e vir.”

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No entanto, segundo ela, Fux citou uma regra interna do STF — a Súmula 606 (imagem abaixo) —, para ignorar o pedido de Daniel Silveira. A norma foi estabelecida em 1984 e afirma que não é possível obter proteção por meio de HC contra decisões das turmas do STF ou do plenário do Supremo. O texto também passou a ser usado para favorecer ações monocráticas de ministros. 

Ou seja, “a Súmula 606 se coloca como norma pretensamente ‘acima’ do texto constitucional”, aponta a especialista, ao chamar o fato de “aberração jurídica, pois a Constituição é a lei fundamental de qualquer nação”, aponta. 

A professora e advogada constitucionalista Vera Chemin também contesta a medida. “Do ponto de vista do ordenamento jurídico, uma norma regimental não pode se sobrepor à Constituição, mesmo que seja criada pelo STF”, aponta a mestre em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). 

De acordo com ela, cláusulas pétreas, como a que envolve habeas corpus, não podem ser alteradas, e qualquer legislação ou jurisprudência que tente se sobrepor à Carta Magna pode ser punida com declaração de inconstitucionalidade ou risco de crime de responsabilidade. 

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“O próprio Regimento do STF dispõe em vários momentos que uma das atribuições do ministro relator é a de remeter HC ou recurso de HC ao julgamento do Plenário, conforme Inciso XI do seu artigo 21”, esclarece. “O impedimento desse direito constitucional por razões regimentais fere os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade”, continua. 

A Corte já aceitou habeas corpus contra decisões monocráticas de ministros 

Outro fator que merece atenção, segundo a professora de Processo Penal Mariana Madera, é que a Súmula 606 nem sempre foi entendida dessa forma, e pedidos de HC já tiveram aprovação do STF “em face de decisões monocráticas proferidas por ministro da Corte”. 

Autora de artigos como “O cabimento de habeas corpus e a jurisprudência defensiva do Supremo”, Mariana explica que a súmula “prevê expressamente” que não sejam aceitos habeas corpus contra decisões colegiadas, ou seja, que envolvam maior número de ministros. Por isso, o Supremo aceitou conceder o habeas corpus por mais de duas décadas relacionados a decisões de apenas um magistrado. 

“Se a democracia é indissociável das garantias às liberdades individuais, é inconcebível o funcionamento de um sistema democrático sem acesso irrestrito ao habeas corpus”

Katia Magalhães, consultora jurídica

O entendimento mudou, no entanto, a partir de um julgamento de 2008 — o HC 86.548-8/SP, contra uma decisão do ministro Joaquim Barbosa em processo envolvendo o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3). Na análise desse HC, a Corte decidiu “aplicar analogicamente a Súmula 606” para não aceitar mais habeas corpus contra decisões tomadas por um dos ministros. Essa se tornou a jurisprudência seguida desde então. 

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“A justificativa utilizada foi de que não existiria hierarquia entre os órgãos colegiados e entre os ministros”, relata a professora da Universidade Católica de Brasília (UCB), que concorda sobre a inexistência de hierarquia, mas vê a necessidade de admissão do HC para reanalisar decisões monocráticas. “Eventualmente, se o Ministro ‘X’ revogasse a decisão de um Ministro ‘Y’, o sistema judiciário não entraria em colapso, como de fato não entrou em situações passadas”. 

Além disso, mesmo após a mudança no entendimento, a consultora jurídica Kátia Magalhães ressalta que habeas corpus contra decisões monocráticas foram admitidos, como no caso de Paulo Maluf, condenado pela 2ª Turma do STF, em 2017, por lavagem de dinheiro.  

Na ocasião, o cumprimento imediato da pena de prisão foi determinado pelo ministro Edson Fachin, mas, “em exame de habeas corpus, o ministro Dias Toffoli reviu a decisão do colega e concedeu prisão domiciliar a Maluf, sob alegação de ‘precário estado de saúde’”, relata Kátia. 

Dois anos antes, outro habeas corpus solicitado por um executivo envolvido na Operação Lava Jato também foi aceito pela Corte. Na ação, a defesa do empresário alegava que o acordo de delação premiada do doleiro Alberto Youssef, que citou o executivo, teria sido ilícita. Cinco ministros reconheceram o HC e cinco não o aceitaram. Então, como em caso de empate o réu deve ser beneficiado, o habeas corpus foi reconhecido. 

Não há democracia sem habeas corpus, afirmam especialistas 

Para Kátia Magalhães, esses exemplos evidenciam que “a aplicação da Súmula 606 tem sido relativizada, no tribunal, ao sabor das conveniências”, o que coloca em risco a democracia, já que a oportunidade de contestar prisões arbitrárias por meio de HC é arma contra regimes autoritários. 

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“Se a democracia é indissociável das garantias às liberdades individuais, é inconcebível o funcionamento de um sistema democrático sem acesso irrestrito ao habeas corpus”, argumenta. 

“O que temos, portanto, é um sistema em que um único ministro concentra todo o poder sobre esses processos, sem permitir que suas decisões sejam questionadas”

Hélio Junior, advogado especialista nos casos do 8 de janeiro

Ainda de acordo com ela, a situação é tão grave que supera até mesmo a proibição desse direito durante a ditadura militar. “O AI-5 suspendeu a garantia do HC, mas apenas para casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, ordem econômica e social, e a economia popular”, aponta Kátia, ao afirmar que a Súmula 606, por sua vez, impossibilita oferecimento de habeas corpus contra qualquer medida da Corte. 

Para o advogado Hélio Junior, especialista nos casos do 8/1, isso restringe a atuação da defesa e veda qualquer contestação ao ministro Alexandre de Moraes. “O que temos, portanto, é um sistema em que um único ministro concentra todo o poder sobre esses processos, sem permitir que suas decisões sejam questionadas”, alerta, pontuando que, dessa forma, o STF se transforma em “órgão de repressão política, onde a aplicação da lei varia conforme conveniência do momento”. 

Ainda segundo ele, a situação estabelece “precedente gravíssimo”, pois, “se hoje o STF pode simplesmente decidir que um grupo específico não tem direito a habeas corpus, amanhã qualquer outro segmento da sociedade pode ser alvo da mesma arbitrariedade”, esclarece. 

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Juristas afirmam que Súmula 606 do STF deve ser revista 

Para o jurista Alessandro Chiarottino, professor de Direito Constitucional e doutor em Direito pela USP, os fatos precisam ser analisados com base em uma análise “sistemática” da Carta Magna. “Nossa Constituição diz que direitos individuais têm que ser interpretados extensivamente, ou seja, de forma favorável ao cidadão.” 

Portanto, como a Súmula 606 é anterior à CF, quando o entendimento e proteção a respeito de direitos fundamentais era diferente, o professor acredita que “seria uma boa hora de o STF revisar a Súmula”. 

“Porém, como não demonstra qualquer intenção nesse sentido, caberia ao Congresso tomar a dianteira e extinguir essa disposição autoritária”, ressalta Kátia Magalhães, sugerindo elaboração de um decreto legislativo que anule a regra.  

“Afinal, se a Súmula 606 se sobrepõe à Constituição e ao CPP como se fosse uma ‘lei’ emanada do judiciário, os congressistas, únicos legisladores do país, teriam obrigação de cancelá-la”, justifica. 

Para o advogado Ezequiel Silveira, que hoje representa a família do “Clezão”, essa é a forma de frear mais esse abuso do STF, que, segundo ele, usa jurisprudência inconstitucional, viola os direitos humanos e, no caso do senhor Cleriston, “foi uma sentença de morte”.

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