Do quadro-negro para a mesa de cirurgia: Josué Matxis, há sete meses em Curitiba, sonha em cursar Medicina| Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo

Auxílio

Ensino do idioma começou em ONG com turma de sete alunos

Antes que a prefeitura abraçasse os haitianos por meio das aulas, a Casla Latinoamericana – uma ONG que ajuda migrantes com todo tipo de assessoria, inclusive jurídica – improvisou aulas de português aos sábados pela manhã. Em pouco tempo, a turma que começou com sete alunos já contava com mais de 90.

"Foi aí que pedimos esse apoio da prefeitura", conta a internacionalista Fabiane Mesquita. "As pessoas os veem como fugidos, bandidos, gente que vem tomar o emprego dos outros. Muitos não tem documentação, então a Casla procura casas para eles ficarem e um professor aqui acaba sendo fiador", diz Fabiane.

Preconceito, burocracia e falta de políticas públicas para o migrante são as dificuldades apontadas pelos estrangeiros que se arriscam no país. "Um dia peguei um jornal, e perguntaram: haitiano sabe ler? Só porque não falamos português acham que somos burros", recorda Fednel Pierressaint, que quer estudar Medicina na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

"A universidade não é para estrangeiros, é difícil entrar. O Brasil é um país caro. Nos falta muita coisa", completa Johndy Choute, 31 anos, três deles em Curitiba. Gerente de supermercado no Haiti, onde deixou esposa e dois filhos, ele tem planos de, futuramente, "morar" nos dois países. "Mas falta segurança para vir com a família," diz.

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Ex-gerente de supermercado, Johndy Choute vive há três anos em Curitiba
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Quando decidiu deixar o Haiti, há sete meses, o professor de Física Fednel Pierressaint, 24 anos, não imaginava que o idioma seria uma barreira tão grande, talvez até maior do que o preconceito enfrentado para ser um cidadão no Brasil. A exemplo de seus mais de mil conterrâneos que, estima-se, vivem na região de Curitiba, Fednel tem mais estudos que boa parte dos brasileiros, fala francês e crioulo (um dialeto haitiano), mas, mesmo assim, não consegue emprego melhor do que assentar tijolos na construção civil. A alternativa para tentar mudar esse cenário surgiu há pouco mais um mês: lições de língua portuguesa.

Fednel e outros 40 haitianos de Curitiba se reúnem nas noites de segunda a quinta-feira, na Escola Municipal Professor Brandão, no Alto da Glória, para aprofundar o contato com o idioma. "O que eu quero é, de dia em dia, falar melhor a língua, para explorar minha capacidade. Nunca pensei em trabalhar na construção. Não é minha vocação", diz Fednel, pausadamente, em um português claro – prova de que as aulas têm ajudado.

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A professora, Ciomara Amorelli Viriato da Silva, não fala francês e nunca tinha ensinado a língua materna a estrangeiros. "Minha experiência era com a formação de professores indígenas para alfabetização de crianças em português. Mas não é difícil. Fazemos ‘teatro’, desenho no quadro, e um aluno mais avançado explica para alguém que não entendeu", conta.

Os alunos têm se esforçado. Mesmo depois de uma jornada estafante, os haitianos encontram forças para caminhar quilômetros a pé e assistir às aulas. "Quero fazer Medicina, mas sem o certificado de fluência no português, você não faz nada", explica Josué Matxis, 24 anos.

Há sete meses em Curi­tiba, onde mora com outros haitianos em uma casa alugada pela empresa de construção civil em que trabalha, o jovem ganha R$ 1 mil por mês. No Haiti, a remuneração era de três dólares por hora para aulas de Física e Matemática.

Sonho

Cursar o ensino superior é um sonho compartilhado por grande parte dos migrantes, como Dina Jean, que é passadeira em uma lavanderia do Batel. "Quero falar muito bem, me explicar bem, para estudar Farmacologia", conta. Acompanhada do marido, Dina abandonou o trabalho em uma ONG internacional de assistência social e deixou os dois filhos, de 3 e 6 anos, aos cuidados da irmã. Em Curitiba, com muito custo, o casal alugou uma casa no bairro Centenário. "Foi muito difícil conseguir alugar. Não quero trazer os filhos, a língua é difícil, é tudo difícil", lamenta.

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Para a professora Cio­mara, os relatos dos migrantes comprovam a necessidade da criação de um centro específico para o ensino da língua a estrangeiros. "Eles estão aqui ajudando a cidade. Há muitos na obra da Arena, do Pátio Batel, mas o salário é muito pouco. O que eles ganham em troca?", questiona.

"Eles foram iludidos", diz assistente social

Os atendimentos a haitianos são frequentes na Pastoral do Migrante de Curitiba desde 2011, quando eles começaram a desembarcar no país. Segundo a assistente social Elizete Sant’Anna de Oliveira, a migração é forçada pela inexistência de postos de trabalho no Haiti. "Eles vieram muito iludidos para cá, os coiotes [pessoas que fazem a travessia até o país] prometeram que ganhariam em dólar. Muitos contraíram dívidas lá, venderam o que não tinham para vir. E, agora, a angústia deles em mandar dinheiro para a família é grande," explica.

No Brasil, os haitianos acabaram criando uma extensa rede entre si, o que torna o país mais atrativo, apesar dos baixos salários. Não é difícil encontrar quem tenha vindo para Curitiba por causa de um amigo ou parente. Aqui, eles têm visto de permanência, registro em Carteira de Trabalho e CPF. Os que não têm seguro saúde na empresa são atendidos como qualquer brasileiro pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Mas os direitos plenos de cidadão são mais distantes. O Registro Nacional de Estrangeiro (RNE) leva de um a dois anos para sair. Traduzir e reconhecer documentos é outro processo caro e demorado. "A organização do governo precisa ser maior. Deveria existir uma secretaria municipal para o migrante, por exemplo", ressalta Elizete.

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