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Do ponto de vista da legislação, o Brasil é um país monogâmico. Todo o arcabouço jurídico e administrativo prevê relacionamentos entre duas pessoas. Desde 1977, é possível se divorciar, e iniciar outro casamento, e, desde 2011, a união entre pessoas do mesmo sexo é reconhecida – mas são sempre duas pessoas conectadas em relação, nunca mais.
Todas as questões patrimoniais e sucessórias, por exemplo, envolvem exclusivamente cônjuges e os descendentes produzidos por suas relações – amantes entram na figura legal do concubinato, e não têm os mesmos direitos. Nos últimos anos, porém, alguns acontecimentos no Judiciário e no Legislativo permitiram identificar uma tentativa de mudança nesse cenário. É possível que o Brasil se torne um país em que a poligamia é reconhecida legalmente?
Em 2012, surgiram as primeiras notícias de cartórios reconhecendo uniões estáveis de mais de duas pessoas – especificamente no Rio de Janeiro e nas cidades paulistas de Tupã e São Vicente. No caso de Tupã, por exemplo, um homem conseguiu registrar duas esposas. Em 2016, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou que nenhum cartório do Brasil concedesse esse tipo de certidão até que a questão fosse analisada. Em junho de 2018, o CNJ chegou à decisão definitiva, proibindo a concessão de registros civis para uniões compostas por mais de duas pessoas. Desde então, o debate migrou para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Ações no Supremo
Neste momento, o STF lida com dois recursos extraordinários. Um deles ainda não foi julgado. O outro começou a ser analisado no dia 25 setembro de 2019, mas o julgamento foi interrompido depois que o ministro Dias Toffoli pediu para analisar melhor o caso. Trata-se de um pedido de divisão da pensão de um homem entre sua esposa e seu amante. A solicitação foi negada pela justiça estadual de Sergipe, mas o solicitante recorreu. Neste momento, o caso recebeu três votos contra a divisão da pensão com um terceiro (do relator, Alexandre de Moraes, e dos ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes). Outros cinco ministros já votaram a favor: Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Carmen Lúcia e Marco Aurélio Mello. Faltam três votos.
“A Constituição Federal é clara ao estabelecer que a união estável é constituída por duas pessoas. Essa decisão poderia abrir um precedente para muitos outros casos”, contesta Regina Beatriz Tavares da Silva, advogada e presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). “Esse recurso é de repercussão geral, e aceitá-lo seria incoerente. O próprio Supremo já julgou recentemente que a união estável é igual ao casamento em efeitos. Como pode ser desigual em impedimentos?”.
A ADFAS, aliás, trata do assunto com propriedade: foi a associação que solicitou ao CNJ um posicionamento sobre as ações dos cartórios, e solicitou ao STF licença para se manifestar sobre o recurso vindo de Sergipe. “Essa é uma porta que se abre para outros direitos, porque o Supremo estaria reconhecendo a existência de outro formato de família”, argumenta a advogada. Ainda não há data agendada para a retomada do julgamento.
Ações no Congresso
No Congresso Nacional, um projeto de lei, de autoria do deputado Orlando Silva (PCdoB/SP), defende uma nova concepção de família, estabelecida a partir das relações afetivas de mais de duas pessoas. Neste momento, o projeto de lei aguarda parecer do relator na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM). Ganhou o apelido de Estatuto das Famílias do Século XXI.
A essa iniciativa se contrapõe o chamado Estatuto da Família, que tramita desde 2013 e é de autoria do deputado Anderson Ferreira (PR-PE). A proposta quer, a exemplo do que ocorreu com o Estatuto do Idoso e com o Estatuto da Criança e do Adolescente, acelerar a adoção de políticas pública protetivas a essa “unidade-base” da sociedade. O projeto já tramitou em todas as comissões e está pronto para ser submetido ao plenário da Câmara dos Deputados.
Outra proposta tramitando no Congresso, de relatoria do deputado Alan Rick (DEM/AC), proíbe expressamente o reconhecimento da chamada união poliafetiva. O projeto de lei 4.302/2016 está pronto para ser votado pela Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara.
Consequências
Caso seja aceito o recurso em julgamento no STF, a decisão certamente provocaria uma enxurrada de recursos solicitando a divisão de pensões do INSS e de previdências privadas, além de disputas por patrimônio.
“Com todos os problemas que já tem, o sistema previdenciário brasileiro teria que começar a considerar os relacionamentos formados por dois, cinco, dez parceiros”, projeta a presidente da ADFAS.
“O mesmo vale para, por exemplo, os planos de saúde, que se veriam obrigados a lidar com uma carga muito maior de usuários para um mesmo plano. E os filhos, como seriam tratados? Quem seriam os responsáveis pelas crianças nascidas de relações poligâmicas?”.
Além disso, afirma Regina Beatriz Tavares da Silva, é ilusório pressupor que a poligamia represente maior liberdade.
“Ao conseguir a certidão para o relacionamento a três em Tupã, por exemplo, o homem determinou que ele era o líder, seguido pela esposa mais antiga, e só depois a mais nova. Não era uma relação igualitária, mesmo a Constituição determinando que todos são iguais perante a lei”, diz. “Relações envolvendo mais pessoas tendem a ser mais desiguais. Alguém vai assumir a liderança, em detrimento da liberdade dos outros. Imagine que a esposa com menos poder queira trabalhar. O marido poderia então proibir?”.
Caso passasse a aceitar a poligamia, o Brasil se uniria a um grupo de dezenas de países, como Quênia, Somália, Sudão, Uganda, Butão, Irã e Síria. No restante do planeta, a monogamia forma a base da legislação – com exceção de alguns países que liberam a prática da poligamia exclusivamente para muçulmanos, caso da Índia e de Singapura.
Existem estudos que se debruçaram sobre o tema. Concluíram que a poligamia reduz o investimento de tempo na educação de meninas e reduz a produtividade profissional. Para Regina Beatriz Tavares da Silva, a opção pela monogamia não é casual, nem motivada por algum tipo de moralismo. “Sociedades baseadas em monogamia são mais estáveis e produtivas”, afirma.
“É por isso que, ao longo da história, a humanidade em geral evoluiu da poligamia para relações monogâmicas. É o sistema constitucionalmente previsto como essencial à manutenção da sociedade brasileira, da nação brasileira”.