O livro que ditou todos os ideais de um dos mais perversos personagens da história do século 20 está novamente no centro das atenções. Principal instrumento de disseminação dos fundamentos nazistas, Mein Kampf (ou Minha Luta, em português), a autobiografia de Adolf Hitler (1889-1945) publicada em 1925, deve voltar ao mercado editorial – inclusive do Brasil.
O livro está fora das grandes livrarias desde o fim da 2.ª Guerra Mundial. Mas com os 70 anos do suicídio de Hitler a obra entrou em domínio público, o que possibilita a qualquer interessado publicar o livro, que chegou a vender cerca de 12 milhões de exemplares em toda a história. Antes disso, os direitos da publicação estavam sob o domínio do governo regional da Baviera, que não autorizava novas edições.
A falta de liberação, no entanto, não evitava que Minha Luta circulasse de forma clandestina, principalmente em formato digital, já que pode ser encontrado na internet. No Brasil, algumas editoras alegavam desconhecer os direitos da obra ao governo alemão e chegaram a publicar Minha Luta. A última versão foi lançada em 2005 pela Centauro. Com uma tiragem de 2 mil exemplares, ela gerou processos judiciais contra a empresa.
Coube a este controverso livro o papel de guia para a efetivação e manutenção do regime totalitarista em terras germânicas. Repleto de generalizações sobre raça e gênero, Minha Luta é um livro que coloca os judeus como inimigos a serem combatidos em nome da preservação ariana. Hitler indica em sua obra a hipótese de o judeu ser a principal ameaça ao ariano.
O livro é considerado um dos pilares para que as políticas nazistas ganhassem força e marcassem, negativamente, o nome na história mundial. “Todos os nazistas usavam o livro como base de orientação sobre o modus operandi do partido e depois do governo”, afirma a historiadora e professora da UFPR, Marion Brephol. A princípio o livro passou quase desapercebido, mas lentamente a obra ganhou terreno. Devido à pavorosa crise econômica 1929, com aumento do desemprego e da miséria, o Partido Nacional-Socialista progrediu enormemente e com ele a difusão da obra de Hitler.
Judeus
No livro, Hitler traça um perfil de inferioridade dos judeus no intuito de unificar o sentimento popular em torno do programa nacional-socialista. Na prática, o nazismo atuou perversamente com formação de campos de concentração e uma prática de extermínio que tirou a vida de 6 milhões de judeus europeus durante o Holocausto. Os judeus foram transformados em bodes expiatórios dos problemas nacionais e o ódio aos mesmos se tornou um dos pilares do nazismo.
Além disso, Hitler em vários caracteriza o povo ariano como superior. “Se a humanidade se pudesse dividir em três categorias: fundadores, depositários e destruidores de Cultura, só o Ariano deveria ser visto como representante da primeira classe. (...) É ele quem fornece o formidável material de construção e os projetos para todo progresso humano”, escreveu o ditador alemão na controversa obra.
Novas publicações
Na Alemanha, o livro retornou na última sexta-feira (8), em uma edição crítica, com 2 mil páginas, sendo quase dois terços compostos por notas de rodapé e textos complementares – a legislação alemã entende que a reedição pura e simples do original configura propaganda nazista. O livro será publicado pelo Instituto de História Contemporânea de Munique (IHCM), “para evitar que editoras privadas ganhem dinheiro com ele”, como divulgou o órgão.
Para a ministra da Educação da Alemanha, Johanna Wanke, a edição é um modo de oferecer o texto em um formato indagador, que confronta as ideias delirantes do original. Ela defende sua leitura inclusive nas salas de aula: “Em vez de permitir que o encanto do proibido cative os jovens, é muito melhor que os alunos conheçam o texto pela mão de professores de História e Política”, escreveu, em recente artigo no jornal Passauer Neue Presse.
No Brasil, a Geração Editorial trabalha há dois anos em uma tradução de Mein Kampf direta do alemão, repleta de notas críticas e textos de apoio. A edição chegará às livrarias em fevereiro. A editora Centauro também trabalhará a obra no país – no site Estante Virtual, já há exemplares. O livro não tem notas explicativas, mas o texto de divulgação afirma que “não apoia nem respalda, por nenhum meio ou forma, a ideologia ou os conceitos doutrinários de seu autor”.
Bom senso
O historiador Luiz Gustavo de Oliveira caracteriza a obra Minha Luta como panfletária e aponta que o livro de Hitler pode ser considerado uma espécie de “Bíblia Nazista”. O longo tempo de proibição em terras germânicas, segundo ele, subestima o bom senso e a maturidade intelectual do povo alemão ou de qualquer possível leitor da obra.
“Mein Kampf é um documento de grande valia para estudos sobre a ascensão do nazismo na Alemanha, é uma forma de compreender o que se passava na mirabolante mente de Adolf Hitler. Proibir, esconder o livro nas sombras da ilegalidade é superestimar o pensamento deste personagem político e ajudar na manutenção do mito que Hitler se tornou”. Oliveira acredita que o livro perdeu seu potencial de mobilização extremista. “Apesar do possível sucesso editorial que possa ter a obra, acredito que ela não se tornará livro de bolso ou de cabeceira de cama dos leitores, mas continuará suscitando a curiosidade do grande público por este fenômeno: o nazismo”, ressalta.
Estrutura
A obra é dividida em duas partes. Na primeira, Hitler narra os principais passos de sua vida; na segunda, expõe sua doutrina para a estruturação do Estado Nacional- Socialista. Foi um veículo fundamental na divulgação das ideias do autor. Vale mencionar, que a obra também analisa, pela ótica de Hitler, os efeitos provocados na Alemanha pelo Tratado de Versalhes de 1919 – que havia imposto severas cláusulas de rendição ao país após a I Guerra Mundial (1914-1918).
Percurso na Alemanha
Minha Luta foi lançado em 1925, sem causar grande estardalhaço, mas ficou mais popular na medida em que seu autor avançava na escalada ao poder. Em 1933, quando Hitler se tornou chanceler, o livro ultrapassou o primeiro milhão em vendas. Já em 1940, virou leitura escolar obrigatória. Depois da 2ª Guerra Mundial, o livro foi proibido.
Onda nacionalista já pairava sob a Europa
Para a historiadora e professora da Universidade Estadual de Londrina, Sylvia Lenz, nada justifica as ações violentas do nazismo. Mesmo assim, segundo ela, é necessário analisar o livro e a ascensão do nazismo sob o contexto da época. Durante as primeiras décadas do século passado, muitas nações europeias também defendiam políticas nacionalistas, imperialistas e expansionistas. “França e Inglaterra, por exemplo, tinham colônias em países africanos e asiáticos e iam para essas comunidades como se fossem superiores”, afirma.
Além dessas nações, Itália, com Mussolini, Espanha, com Franco e Portugal, com Salazar, eram outros países que focavam em políticas nacionalistas e práticas ditatoriais. “Era uma onda que tomava conta de toda a Europa. Essa ideia nacionalista já existia. Sem falar do Stálin que provocou morte e perseguição na União Soviética. Se for para analisar o livro do Hitler, também é preciso falar e analisar o livro do Stálin (O Materialismo dialético e o materialismo histórico)”, afirma a historiadora.
Ela acredita que o Mein Kampf ganhou tanta importância e polêmica pelo fato de a Alemanha ter sido derrotada na 2.ª Guerra Mundial. “O fato de ter sido proibido por tanto tempo chama mais ainda a atenção”, completa. Sylvia relata ainda que o livro foi escrito pelo austríaco Hitler sem que ele tivesse noção de que se tornaria o III Reich alemão. “Ele era um pintor frustrado que não se conformava com as imposições dadas a Alemanha pelo Tratado de Versalhes. O bode expiatório que ele encontrou foram os judeus. Em toda história, há um bode expiatório”, ressalta. Além disso, segundo ela, a crise econômica de 1929 foi preponderante para que as ideias nazistas ganhassem adeptos e ele tivesse apoio da população alemã.