Há três anos, a arquiteta e historiadora Elizabeth Amorim de Castro e a antropóloga Zulmara Posse soltaram um sonoro “será?” na hora de fechar um novo projeto de pesquisa. Vinham de quatro parcerias juntas – a exemplo do festejado As virtudes do bem morar, que rendeu um “catatau” e uma solene mostra sobre o engenheiro Eduardo Chaves. Tal êxito era o bastante para suspeitar de que uma obra que tratasse do Matadouro de Curitiba – tema que deu de persegui-las – não despertaria interesse nem do mais devoto apreciador de churrascos. “Sem dizer que a Zulmara é vegetariana”, brinca Elizabeth.
Para felicidade, a dupla optou pelo “sim”, beneficiando pelo menos três campos de estudos – a saúde pública, a ocupação da periferia e os mecanismos do abastecimento local. O livro Os 75 anos do Matadouro Municipal do Guabirotuba – arquitetura, urbanização e higienismo, recém-lançado, chama atenção por seus guarda-chuvas temáticos, mas sobretudo pelo paladar inesperado. Com perdão ao trocadilho, há vida por trás do matadouro. Em meio a 240 páginas – nas quais não faltam meticulosas normas para abate e legislação – emerge um engenhoso descritivo sobre como a alimentação determina os destinos de uma cidade.
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O interesse de Elizabeth e Zulmara pelo assunto veio de um estudo anterior – feito em parceria com o arquiteto Humberto Mezzadri. Ocuparam-se do Matadouro da Itupava, em 1874, e do Modelo, no Atuba, instalado no ano de 1929. Foi ali que suspeitaram de que haveria ouro por trás das moelas, tripas e quetais da construção que veio para botar ordem no modus operandi de todas as outras fabriquetas de linguiças e “chachichos” – e haviam às pencas na cidade cuja população cultivava embutidos com paixão.
PARA BAIXAR
Pesquisa sobre o Matadouro de Curitiba foi viabilizada pelo Programa de Apoio e Incentivo à Cultura da Fundação Cultural de Curitiba. Recebeu incentivo da Celepar, Higiserv e Best Way Trips. Obra pode ser baixada no endereço https://omatadouromunicipaleoguabirotuba.wordpress.com/
Não se enganaram. Embora o volume de informações disponíveis nos arquivos esteja aquém do desejado, o que se encontrou foi o bastante para mostrar as tensões que se escondem por trás do abastecimento de carne. Podiam ter gerado uma guerra. A pesquisa dá contas do controle excessivo do poder público sobre a questão, mas também de sua fraqueza diante dos interesses de magnatas do ramo. Do acondicionamento que beirava a calamidade ao desejo de status que se escondia no consumo de carne.
PARA BAIXAR
Estudo sobre o Matadouro do Guabirotuba, de Elizabeth Amorim de Castro e Zulmara Posse, foi viabilizada pelo Programa de Apoio e Incentivo à Cultura da Fundação Cultural de Curitiba. Recebeu incentivo da Celepar, Higiserv e Best Way Trips. Como retorno pelo investimento na pesquisa, obra pode ser baixada, de forma integral, no endereço: https://omatadouromunicipaleoguabirotuba.wordpress.com/
Não é uma novela, mas bem poderia. O “sentido” de comer carne rende bons enredos. Estudiosos do naipe de Antonio Candido se ocuparam do assunto, como lembra Zulmara. Ela recobra a expressão “fome psíquica”, usada para definir a vontade nutrida entre aqueles que não sabiam o que era ter um bife ao prato. O imigrante ou o caboclo, não importa, queria comer para se sentir gente. “Os dirigentes sabiam bem disso, e davam carne e circo para o povo”, observa Zulmara.
Essa história, claro, não se dá sem tensões. “Os 75 anos do Matadouro foram de briga. Sempre havia alguém disposto a fechá-lo. O Rio Belém é de charco, a região é alagadiça. Construíram o prédio numa região inadequada”, ilustra Elizabeth. “Em todo o tempo de seu funcionamento, o Matadouro enfrentou brigas monstruosas, envolvendo dinheiro e poder. O Plano Agache (1943) e o Plano Diretor de 67 queriam tirá-lo de lá, sem sucesso. Laudos judiciais vão determinar seu fechamento”, acrescenta Zulmara.
Terras baratas
Não raro, a má qualidade da carne iam parar na capa dos jornais, sem meios tons. “As partes ficavam expostas lá dentro por até três dias. Não sei como não morreu um monte de gente”, dizem as pesquisadoras. Greves, piquetes e desaforos a viva voz no balcão da farta rede de açougues marcaram a rotina da cidade. Longe de serem meras cenas paroquianas, esses quiproquós revelam que o consumo de carnes estava no topo da cadeia alimentar. Daí a importância do Matadouro – hoje desativado. O prédio foi repassado para o Instituto Federal do Paraná, o IFPR.
Em outras cidades do mundo e do Brasil, os matadouros nascidos dos imperativos higienistas do século 19 deram origem a cidades inteiras. A escala de instalação dessas máquinas de processar carne era industrial. Exigia lastros de terra, barracões, repartições... Em Curitiba, ao contrário, o matadouro deu origem a um bairro, o Guabirotuba. No ano da fundação, 1899, a cidade quase não chegava até lá. Não havia atrativos às margens de um Rio Belém lamacento. Povoou-se o eito do rio de todas as sobras dos bovinos e suínos que esperavam o abate em invernadas.
Contra todas as evidências, a região prosperou, à revelia da má fama do Matadouro . Ganhou uma linha de bonde – usada para transporte de pessoas e de lotes de mignon. No entorno, loteamentos populares, com o intuito de levar curitibanos para aquelas bandas, atraídos pelo pacote de água, luz e esgoto, terras baratas e investimentos.
Se de um lado havia o cenário de carnifina, por outro havia os ganhos secundários. O local ganhou bons vizinhos, como o Horto Florestal, o Jóquei Clube. A lista de lugares que fizeram do Guabirotuba um cenário desejável é longa. “O Matadouro serviu de indutor ao progresso. As propagandas diziam ‘dobre seu capital em um ano’, de modo a atrair novos moradores”, observa Zulmara. Funcionou.
“Crise dos bifes” era estampada nas páginas dos jornais
O Matadouro do Guabirotuba nasceu sob o signo do conflito. Nas décadas de 30, 40, 50..., mas de uma vez, o local ocupava o centro da cena. Os editoriais nem sempre eram tão explícitos, mas sugeriam que “comer carne em Curitiba era correr risco de vida”. “Os diários figuram entre nossas fontes principais”, dizem as pesquisadoras Elizabeth Amorim e Zulmara Posse, diante da pouca documentação sobre o local.
Chega a ser divertido. A Gazeta do Povo de 1º de setembro de 1931 saúda uma reforma feita no Matadouro como “revolucionária”, garantindo “carne higienicamente cortada, boa e barata”. Anúncios de jornal, de 1953, mostram o mapa de um loteamento nas beiras da Avenida Salgado Filho – de 220 a 500 metros quadrados. O Jardim Urano nasceu dessa “especulação” em torno do Matadouro. Em 1959, foi a vez do Jardim das Américas. O Centro Politécnico e o Sanatório São Carlos, entre outros investimentos, seguiram garantindo a dobradinha “matadouro + Guabirotuba”.
Em outros momentos, contudo, o espaço nos jornais apontava uma “guerra” dos consumidores contra a qualidade dos produtos vindos do Matadouro. “Fotos mostram cães, gatos e ratos em roda da carne exposta por lá”, ilustram as autoras. Os títulos das matérias não deixavam por menos. Em 1928, um periódico titulava: “Feio e anti-hygienico – no transporte de carne nos bondes para os açougues precisa haver mais um pouco de asseio”.
No mesmo ano: “Velando pela saude publica: a carne não poderia mais ser embrulhada em papel impresso”. Ou simplesmente: “Hygienisemos os nossos açougues”. Some-se na coleção “pecados da carne”, protestos contra a alta do bife.
Dois anos depois da “crise de 1928” no mercado de carnes, estoura uma greve dos açougueiros. A direção do Matadouro do Guabirotuba indica 20 açougues em que a população pode comprar naqueles tempos difíceis. Mas os ataques custaram a passar. Volta e meia, cartas dos moradores do Guabirotuba reclamavam a “falta de compaixão” com os animais à espera de abate. Em 1941, com um pouco mais de humor, a população, via jornais, pediu o fim dos “bifes-sola”, um apelido autoexplicativo. (JCF)