Um exército de retirantes convocado pelo Estado brasileiro reviveu os tempos de escravidão em plena década de 1940. Enquanto a 2.ª Guerra Mundial espalhava-se pela Europa e Ásia, perto de 55 mil brasileiros enfrentaram doenças fatais, passaram fome e estavam presos aos domínios dos ‘coronéis’ donos dos seringais na região amazônica. Muitos desses soldados deram a vida, literalmente, para alimentar a indústria bélica americana durante o conflito e fornecer insumos para armas e pneus, por exemplo.
Humildes, eles foram recrutados para trabalhar na extração da seringa com a promessa de que voltariam de lá milionários. Estima-se que mais da metade dos aliciados pelo então Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia acabou morrendo devido às condições insalubres em que foram submetidos. Surtos epidêmicos e ataques de animais também provocaram a morte dos recrutas.
Especial: Os pracinhas na 2.ª Guerra
Leia a série de reportagens que a Gazeta do Povo produziu em agosto de 2015, 70 anos após o início do conflito
Todas as garantias anunciadas eram inexistentes. A falta de pagamento e a fiscalização desleixada do governo viraram regra. O resultado foi um tratamento desumano a esses soldados que ajudaram garantir a vitória dos Aliados durante a guerra mais sangrenta da história. “Os soldados da borracha voltaram a viver em um sistema feudal e escravocrata”, pontua Wolney Oliveira, pesquisador do assunto e autor do projeto do livro Soldados da Borracha – Os Heróis Esquecidos, lançado no ano passado. A maioria dos soldados era formada por nordestinos, que tinham sofrido com períodos de seca nos anos anteriores.
“Mas também havia gente de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Muitos presos que estavam nas cadeias dessas regiões foram transformados em ‘soldados da borracha’. O resultado dessa política foi um dos maiores genocídios que o Brasil já fez”, ressalta Oliveira.
Campanha
Para atrair as pessoas até lá o governo adotou uma campanha de recrutamento que tomou conta principalmente do Nordeste brasileiro. “Trabalhador nordestino, alista-te hoje mesmo, cumpre o teu dever para com a pátria”, estava escrito na capa de uma cartilha divulgada para atrair os trabalhadores. Cartazes repletos de palavras fortes e otimistas davam a ilusão de que regressariam da floresta amazônica ricos.
Porém, a realidade era completamente outra. Os soldados da borracha já chegavam aos seringais devendo aos donos da terra. Desde o transporte até o alimento era cobrado. O “sistema de aviamento” mantinha o trabalhador preso por meio de uma dívida interminável, que crescia dia após dia.
Tudo que se recebia no seringal era cobrado. Mantimentos, ferramentas, tigelas, roupas, armas, munição, remédios, tudo enfim era anotado na sua conta corrente e o preço era cinco vezes maior que o normal. No fim da safra, a produção de borracha de cada seringueiro era abatida da dívida. Mas o valor de sua produção era, quase sempre, considerado inferior à quantia devida.
“Os ‘coronéis’ faziam a lei deles. Havia capangas que faziam emboscadas para matar os soldados que teriam ‘quitado’ a dívida. Assim, o dinheiro voltava aos coronéis”, relata Oliveira.
Injustiça
Após longa luta judicial, A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou em 2014 chamada PEC dos Seringueiros que prevê pagamento em parcela única de R$ 25 mil aos soldados da borracha. O texto, no entanto, não altera o valor da pensão vitalícia paga aos soldados da borracha, fixada pela Constituição em dois salários mínimos. A categoria lutava para ter salário equiparado aos pracinhas que foram à Europa. Além disso, há um procedimento na Organização das Nações Unidas para apurar a violação aos direitos humanos neste episódio. Atualmente, cerca de 5,8 mil recrutados continuam vivos.
Recém-chegados
Os recém-chegados à região recebiam alcunhas pejorativas. Eram chamados de ‘brabos’ (aqueles que ainda não sabiam cortar seringa) ou de ‘caga-navio’, por enfrentarem infecções intestinais intensas provocadas pela má alimentação servida no trajeto até os seringais.
Aos 20 anos, ele perdeu 30 amigos nos seringais da Amazônia
Aos 20 anos, José Romão foi um dos recrutados para ser “soldado da borracha”. Ele deixou sua cidade natal, Parnaíba (PI), para se aventurar na floresta amazônica e deparou-se com uma insólita realidade. “Nem comida os patrões davam se você não produzisse. A situação era precária. Ficamos ao léu”, conta.
Hoje, Romão possui 93 anos e é presidente do Sindicato dos Soldados da Borracha e dos Seringueiros de Rondônia. “O que passamos lá era escravidão. Dormia em cima de palha, acordava cedo e era obrigado a produzir para sobreviver”, relata.
Ele ressalta que a dívida nunca diminuía. “A gente ficava preso. Dos 48 companheiros que foram comigo, 30 não voltaram e ficaram contado estrelas”, afirma Romão, referindo-se aos colegas que morreram.
Com o fim da guerra, Romão finalmente se livrou da situação e foi trabalhar no comércio. Em 1981, mudou-se para Rondônia para receber um lote de terra que o governo brasileiro estava distribuindo aos ex-soldados da borracha.
Entenda o acordo entre Brasil e Estados Unidos
Quando a 2.ª Guerra chegou ao Pacífico, o Japão – inimigo dos Estados Unidos – bloqueou os produtores asiáticos de borracha a fornecerem matéria-prima aos Aliados. As autoridades norte-americanas temeram pelo pior. Afinal, a borracha era utilizada em quase todos os armamentos e estava em falta na América do Norte.
As atenções se voltaram para a Amazônia, grande reservatório natural do látex, com cerca de 300 milhões de seringueiras prontas para a produção de 800 mil toneladas de borracha por ano. O baixo número de seringueiros em atividade – 35 mil – era insuficiente para atender a demanda. Esses trabalhadores produziam perto de 17 mil toneladas por ano. Os cálculos dos EUA era de que seriam necessárias 70 mil toneladas.
A assinatura dos Acordos de Washington estabeleceu que o governo americano passaria a investir maciçamente no financiamento da produção de borracha amazônica. Em contrapartida, caberia ao governo brasileiro o encaminhamento de contingentes de trabalhadores para os seringais . “Os Estados Unidos pagaram à vista 2 milhões de dólares e mais 100 dólares por soldado ao governo brasileiro. Dinheiro que nunca chegou aos trabalhadores”, afirma o pesquisador Wolney Oliveira.
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