Em meados da década de 1950, a professora primária Luíza Pereira Dorfmund (1918-1995) podia se dar por satisfeita. Somava pouco mais de 30 anos, estava licenciada das agruras da sala de aula, tinha três filhas, um marido bem empregado e horas livres para cuidar da chácara onde vivia – em Campo Largo, na Região Metropolitana de Curitiba. Mas a leveza da “vida ganha” não fazia bem àquela mulher hiperativa, conhecida por conseguir ler um romance e fazer um tricô ao mesmo tempo, ambos com perfeição.
Para não ser consumida pelo tédio, Luiza deu de se trancar na biblioteca – uma biblioteca só sua, para que seus livros não se confundissem com os do companheiro, o futuro desembargador Henrique Nogueira Dorfmund. O escritório ficava num ponto estratégico da residência. Dali observava Maria da Graça, Maria da Glória e Marília, suas meninas, dava ordens à empregada – já devidamente alfabetizada pela patroa. Na mesma medida em que praticava uma espécie de ecologia doméstica, lançava-se numa aventura que mudaria sua trajetória: a redação do livro didático O estado do Paraná – elementos de história e geografia, publicado em 1958 pela Editora Ghignone.
Pois eis que a obra escrita pela “professorinha”, como se dizia, e dona de casa, caiu no gosto dos educadores que trabalhavam no chão de fábrica. Num período recorde, Luiza passou de autora amadora a escritora profissional, ganhando contratos assinados com publicadoras de ponta da época – como a Editora do Brasil e a FTD. O “jeito” em falar com as crianças lhe rendeu outras pencas de frutos. Não os desperdiçou. “Ela era atrevida”, resume a filha Maria da Graça Vianna. “Uma ajuntadora de gente”, brinca o advogado Ney Vianna, seu genro.
Personalidade da educação e do mercado editorial paranaense por duas décadas, contudo, Luíza Pereira Dorfmund ainda não despertou interesse de pesquisadores. Mesmo à época em que seus livros viraram lição de casa para milhares de paranaenses, sentia que os historiadores da academia viam seu trabalho com reticências – em especial a historiadora Cecília Maria Westphalen, da UFPR. Por motivos evidentes. Tudo leva a crer que dividiram indicações nas escolas, afetos e admirações dos professores. Uma era a sumidade acadêmica. A outra, a dona Lulu.
Em 1953, Cecília lança pela Editora Melhoramentos o didático Pequena História do Paraná. É um marco na unidade federativa que durante quase meio século rezava nas cartilhas de Romário Martins (de 1899) e Sebastião Paraná (de 1903), sem variações. Mas a popularidade recai sobre Luíza. Não chegou a ser uma rivalidade explícita, mas dá conta de um impasse educacional do período. “A universidade via Luíza como uma normalista – uma professora de segunda categoria. Não era do grupo dos ungidos. Os livros dela não fizeram avanços didáticos, mas falavam a língua de quem estava em sala de aula. Era uma professora falando a outras professoras. Preencheu uma lacuna que outros livros não conseguiram preencher”, analisa a historiadora da educação Maria Auxiliadora Schmidt, da UFPR, pesquisadora de livros didáticos.
No jornal
A êxito da obra lançada por Luíza Dorfmund em 1958 lhe rendeu um breve estágio como colaboradora no jornal O Estado do Paraná – onde trabalhava seu irmão, José Erichsen Pereira, mito da imprensa local nos anos dourados. Laçar expoentes da sociedade para figurar nas páginas dos diários era expediente comum no pós-Guerra. Mas Luíza fez mais: em parceria com uma de suas irmãs, Sylvia Bittencourt, fundou o jornalismo infanto-juvenil no estado. Juntas, bolavam jogos, contavam histórias e pintavam o sete com e para os leitores. Em 1962, provavelmente a convite do publisher Francisco Cunha Pereira, a “página” migrou para a Gazeta do Povo e deu origem ao protótipo do que seria um suplemento infantil pioneiro da imprensa brasileira – a Gazetinha (extinto em 2010), precedido apenas da Folhinha, da Folha de S. Paulo, ainda em circulação.
Não são seus únicos feitos. A historiografia paranaense deve a Luiza estudos sobre o intelectual e político do século 19, Jesuíno Marcondes, seu antepassado; e dados surpreendentes sobre a educadora pernambucana Emília Erichsen. Não é pouco. Inteligente, rica e letrada – falava quatro línguas numa época em que mesmo as mulheres bem nascidas apenas cerziam –, Emília fundou em Castro, nos Campos Gerais, o que seria o primeiro jardim de infância brasileiro, em 1862. A história da educação no país passa por ela. A história das mulheres, igualmente. A história de Luiza, que era bisneta de Emília Erichsen, também.
Continuadora?
A filha de Luíza, Maria da Graça, não lembra de a mãe se autointitular uma extensão de Emília. Mesmo assim, as analogias são tentadoras, nas suas devidas escalas. Vale citar uma. A revolucionária Emília deu aulas a filhos de escravos, escrevendo seu nome num dos mais fascinantes capítulos da era pré-Abolição – o letramento de negros cativos. Luíza nasceu em 1918, num país sem escravidão, mas não sem racismo. Um possível biógrafo não terá como desviar das fumaças de amizade de Luíza com duas pioneiras negras – a professora Maria Nicolas (1899-1988) e a engenheira Enedina Alves Marques (1913-1981).
Transferida para Palmeira, nos Campos Gerais, Maria Nicolas foi morar na casa de Luíza, que lá nasceu. Não é exagero supor que esse apoio soma um tijolo na carreira da autora de Alma das ruas como dramaturga, poeta, romancista e, sobretudo grande mestra. Quanto à engenheira Enedina, a primeira nesse ofício e nessa cor no Brasil, foram próximas, mas os laços estão por serem esclarecidos. Suspeita-se que, normalistas, tenham trabalhado juntas em um grupo escolar de Rio Negro, Sul do Paraná, na década de 1930 – quando Enedina era um ponto fora da curva. Não é raro em meio à febre de pesquisas sobre a engenheira alguém trombar na figura da amiga Luíza.
Meros acasos? A linha do tempo que liga a bisneta de Emília Erichsen a tanta gente incrível é no mínimo uma bela história para contar. Do mesmo modo, diz algo o fato de que a descendente de uma das educadoras mais célebres do Brasil tenha se lançado na autoria dos livros didáticos e no jornalismo para pequenos leitores. Um laço – de fita – se amarra aí.