Em meados da década de 1950, a professora primária Luíza Pereira Dorfmund (1918-1995) podia se dar por satisfeita. Somava pouco mais de 30 anos, estava licenciada das agruras da sala de aula, tinha três filhas, um marido bem empregado e horas livres para cuidar da chácara onde vivia – em Campo Largo, na Região Metropolitana de Curitiba. Mas a leveza da “vida ganha” não fazia bem àquela mulher hiperativa, conhecida por conseguir ler um romance e fazer um tricô ao mesmo tempo, ambos com perfeição.
Ponto para a normalista nascida em Palmeira
Os livros de História de Luíza Dorfmund deveriam ser estudados pela academia? A depender de uma das autoridades em produção didática da Universidade Federal do Paraná, a historiadora Maria Auxiliadora Schmidt, a resposta é “sim”. Mas a pesquisadora não descarta as razões para que, até hoje, essa obra não tenha despertado interesse.
Do ponto de vista pedagógico, observa, a produção de Luíza não representa um grande desafio. Outros, antes dela, foram mais longe nos ditames da chamada Escola Nova, corrente do ensino que gozou de simpatia oceânica no Brasil, a partir da década de 1930. Os livros da paranaense, diz Dolinha – como Auxiliadora é conhecida – são soltos, têm método, mas pouca filosofia de ensino aplicada. E sucumbem diante da produção de um “monstro” da academia – a historiadora Cecília Maria Westphalen.
Os didáticos de História de Cecília e de Luíza foram publicados nos anos Juscelino Kubitschek. O presidente “bossa nova”, como era chamado, provocou um caráter desenvolvimentista também na educação. No Paraná, esta atmosfera “prafrentex”, como se dizia, se traduz numa nova dentição do “paranismo”, que uma e outra autora acabam por reproduzir. Cecília, no entanto, era a intelectual que tinha estudado com ninguém menos do Fernand Braudel. Luíza, a normalista que vinha da escola pública.
Tudo indica que, em termos de tiragem, a professorinha ganhou a parada. O livro de Cecília mereceu edição premiada, por ocasião do Centenário da Emancipação Política do Paraná, em 1953. O de Luíza – mulher de juiz e depois desembargador, irmã de um jornalista influente – também pode ter se beneficiado dos boas relações familiares. Mas a recepção positiva se estendeu pela década de 1960, o que sugere que tenha sido festejado no mercado. “Imagino que as professoras do ensino normal tenham adorado o livro de Dorfmund. É pequeno, não tem uma estrutura narrativa rígida, agrada”, diz. Difícil afirmar mais do que isso.
Dolinha lembra que as editoras raramente registram o tamanho de suas edições – ainda mais há 60 anos. Não se sabe quantos exemplares Luíza Dorfmund publicou, quantas escolas adotaram seus livros, tampouco há registros de seus leitores. O mesmo se diga do livro didático de Cecília Westphalen. É possível encontrar poucos exemplares desses títulos nos sebos. Só. “Uma pena”, reitera a estudiosa, sobre um banco de dados capenga que impede avanços nas pesquisas. (JCF)
Para não ser consumida pelo tédio, Luiza deu de se trancar na biblioteca – uma biblioteca só sua, para que seus livros não se confundissem com os do companheiro, o futuro desembargador Henrique Nogueira Dorfmund. O escritório ficava num ponto estratégico da residência. Dali observava Maria da Graça, Maria da Glória e Marília, suas meninas, dava ordens à empregada – já devidamente alfabetizada pela patroa. Na mesma medida em que praticava uma espécie de ecologia doméstica, lançava-se numa aventura que mudaria sua trajetória: a redação do livro didático O estado do Paraná – elementos de história e geografia, publicado em 1958 pela Editora Ghignone.
Pois eis que a obra escrita pela “professorinha”, como se dizia, e dona de casa, caiu no gosto dos educadores que trabalhavam no chão de fábrica. Num período recorde, Luiza passou de autora amadora a escritora profissional, ganhando contratos assinados com publicadoras de ponta da época – como a Editora do Brasil e a FTD. O “jeito” em falar com as crianças lhe rendeu outras pencas de frutos. Não os desperdiçou. “Ela era atrevida”, resume a filha Maria da Graça Vianna. “Uma ajuntadora de gente”, brinca o advogado Ney Vianna, seu genro.
Personalidade da educação e do mercado editorial paranaense por duas décadas, contudo, Luíza Pereira Dorfmund ainda não despertou interesse de pesquisadores. Mesmo à época em que seus livros viraram lição de casa para milhares de paranaenses, sentia que os historiadores da academia viam seu trabalho com reticências – em especial a historiadora Cecília Maria Westphalen, da UFPR. Por motivos evidentes. Tudo leva a crer que dividiram indicações nas escolas, afetos e admirações dos professores. Uma era a sumidade acadêmica. A outra, a dona Lulu.
Em 1953, Cecília lança pela Editora Melhoramentos o didático Pequena História do Paraná. É um marco na unidade federativa que durante quase meio século rezava nas cartilhas de Romário Martins (de 1899) e Sebastião Paraná (de 1903), sem variações. Mas a popularidade recai sobre Luíza. Não chegou a ser uma rivalidade explícita, mas dá conta de um impasse educacional do período. “A universidade via Luíza como uma normalista – uma professora de segunda categoria. Não era do grupo dos ungidos. Os livros dela não fizeram avanços didáticos, mas falavam a língua de quem estava em sala de aula. Era uma professora falando a outras professoras. Preencheu uma lacuna que outros livros não conseguiram preencher”, analisa a historiadora da educação Maria Auxiliadora Schmidt, da UFPR, pesquisadora de livros didáticos.
No jornal
A êxito da obra lançada por Luíza Dorfmund em 1958 lhe rendeu um breve estágio como colaboradora no jornal O Estado do Paraná – onde trabalhava seu irmão, José Erichsen Pereira, mito da imprensa local nos anos dourados. Laçar expoentes da sociedade para figurar nas páginas dos diários era expediente comum no pós-Guerra. Mas Luíza fez mais: em parceria com uma de suas irmãs, Sylvia Bittencourt, fundou o jornalismo infanto-juvenil no estado. Juntas, bolavam jogos, contavam histórias e pintavam o sete com e para os leitores. Em 1962, provavelmente a convite do publisher Francisco Cunha Pereira, a “página” migrou para a Gazeta do Povo e deu origem ao protótipo do que seria um suplemento infantil pioneiro da imprensa brasileira – a Gazetinha (extinto em 2010), precedido apenas da Folhinha, da Folha de S. Paulo, ainda em circulação.
Nos tempos de Luíza
Mestra marcou mercado do livro didático no Paraná:
Décadas 30 e 40
Aos 16 anos, formada no curso Normal, Luíza Dorfmund começa sua carreira na cidade de Rio Negro (PR). Depois, segue lecionando nos Campos Gerais.
1958
Radicada em Campo Largo, lança pela Editora Ghignone o didático O estado do Paraná – elementos de história e geografia. Torna-se autora da FTD e Editora do Brasil. Conhece Riad Salamuni e João José Bigarella.
Década de 1960
Edita na Gazeta do Povo página para público infantil. Iniciativa dá origem ao suplemento Gazetinha, que vai circular por mais de 30 anos, sendo marco brasileiro no jornalismo para crianças. Trabalho perdura quase toda a década. Em 1965, recebe o título de Cidadão Honorária de Curitiba.
A partir da década de 70
Luíza se muda da Rua Buenos Aires, na Água Verde, para a Rua Emiliano Perneta. Passa maior parte do tempo no Rio de Janeiro. Escreve crônicas e frequenta círculos femininos de cultura. Morre em 9 de setembro de 1995, aos 77 anos, de complicações da diabete.
Não são seus únicos feitos. A historiografia paranaense deve a Luiza estudos sobre o intelectual e político do século 19, Jesuíno Marcondes, seu antepassado; e dados surpreendentes sobre a educadora pernambucana Emília Erichsen. Não é pouco. Inteligente, rica e letrada – falava quatro línguas numa época em que mesmo as mulheres bem nascidas apenas cerziam –, Emília fundou em Castro, nos Campos Gerais, o que seria o primeiro jardim de infância brasileiro, em 1862. A história da educação no país passa por ela. A história das mulheres, igualmente. A história de Luiza, que era bisneta de Emília Erichsen, também.
Continuadora?
A filha de Luíza, Maria da Graça, não lembra de a mãe se autointitular uma extensão de Emília. Mesmo assim, as analogias são tentadoras, nas suas devidas escalas. Vale citar uma. A revolucionária Emília deu aulas a filhos de escravos, escrevendo seu nome num dos mais fascinantes capítulos da era pré-Abolição – o letramento de negros cativos. Luíza nasceu em 1918, num país sem escravidão, mas não sem racismo. Um possível biógrafo não terá como desviar das fumaças de amizade de Luíza com duas pioneiras negras – a professora Maria Nicolas (1899-1988) e a engenheira Enedina Alves Marques (1913-1981).
Transferida para Palmeira, nos Campos Gerais, Maria Nicolas foi morar na casa de Luíza, que lá nasceu. Não é exagero supor que esse apoio soma um tijolo na carreira da autora de Alma das ruas como dramaturga, poeta, romancista e, sobretudo grande mestra. Quanto à engenheira Enedina, a primeira nesse ofício e nessa cor no Brasil, foram próximas, mas os laços estão por serem esclarecidos. Suspeita-se que, normalistas, tenham trabalhado juntas em um grupo escolar de Rio Negro, Sul do Paraná, na década de 1930 – quando Enedina era um ponto fora da curva. Não é raro em meio à febre de pesquisas sobre a engenheira alguém trombar na figura da amiga Luíza.
Meros acasos? A linha do tempo que liga a bisneta de Emília Erichsen a tanta gente incrível é no mínimo uma bela história para contar. Do mesmo modo, diz algo o fato de que a descendente de uma das educadoras mais célebres do Brasil tenha se lançado na autoria dos livros didáticos e no jornalismo para pequenos leitores. Um laço – de fita – se amarra aí.
Ela e os outros
Familiares relembram a “pequena fábrica de ideais” de Luíza Dorfmund
1. Os jornais
Depois de um “estágio” no jornal O Estado do Paraná, Luíza e sua irmã Sylvia Bittencourt – que lecionava Artes – se transferem para a Gazeta do Povo. Fazem uma página para crianças, bastante arrojada, com cruzadinhas, produzida na casa de Luíza, com poucos recursos. Suas três filhas eram enredadas no trabalho. Os layouts ficavam penduradas nas paredes. A máquina de escrever, no centro da casa; laudas podiam ser vistas em qualquer canto. “Usávamos a régua de paica”, lembra a filha Maria da Graça, sobre um instrumento pré-histórico de diagramação de jornais. “Avó” do suplemento Gazetinha, seção saía aos domingos ao lado do espaço literário, pontificada por Dalton Trevisan. A coluna também reproduzia redações dos alunos da Escola Municipal São Luiz, na Água Verde, onde as filhas Maria da Graça e Maria da Glória trabalhavam. “Hoje fiz uma redação que não vai sair na Gazet a...”, escreveu um aluno, ao constatar que seu trabalho não estava bom.
2.Os livros
Parte do processo artesanal do “jornal para crianças” era reproduzida nos livros didáticos de Dorfmund. Com exceção do primeiro, lançado em 1958, os demais tinham aspecto de cartilha e comunicação ágil. Não raro, traziam poemas da própria Luíza, como “Pinheiro da minha terra”, assim como escritos de caráter moral, efemérides, higiene e boas maneiras. O forte eram os exercícios, que nasciam de sua experiência em sala de aula, iniciada ainda na adolescência. Com ajuda de estêncil e papel manteiga, a autora reproduzia ilustrações. Mandava o material diagramado para as editoras – a exemplo da série para o primário, intitulada Meu diário. Viajou pelo interior, lançando seus livros. Na cidade de Cascavel, não havendo hotel, ficou hospedada no hospital. Divertia-se.
3. A personalidade
“Se ela pudesse endireitava o mundo”, diz o genro Ney Vianna, sobre a mulher que tinha grande talento para agregar pessoas e uma energia descomunal – além da sala de aula, dava aulas de admissão ao ginásio e alfabetizava adultos, como o médico surdo Jorge Bacilla, um de seus alunos mais famosos - feito dividido com a amiga Maria Nicolas. “Fazia escalas para a gente acompanhá-la”, brinca Ney, sobre o costume de mulher à moda antiga, de nunca andar sozinha. Havia sempre alguém da família convocado para levá-la ao Centro de Letras ou ao Instituto Histórico e Geográfico do Paraná, dois dos espaços que costumava frequentar. (JCF)
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