Onze anos após a implantação da reforma psiquiátrica, os hospitais gerais, como são chamados aqueles conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS), ainda descumprem a determinação de internar doentes mentais e dependentes químicos. Hoje, esses pacientes são atendidos em hospitais de referência ou nos especializados. Desde a reforma, em 2001, que fechou manicômios em todo o país, portarias publicadas pelo Ministério da Saúde continham essa determinação. A última portaria é do fim de julho e estabelece a oferta de até 15% dos leitos dos hospitais para o atendimento a esses pacientes.
Porém, a resistência existe até mesmo nos hospitais regionais administrados pela Secretaria da Saúde do Paraná. O Hospital Regional de Ponta Grossa, inaugurado em 2010, não tem uma ala específica para esse público. Os hospitais regionais do Noroeste (em Paranavaí) e Norte Pioneiro (Santo Antônio da Platina) também encaminham os casos para os hospitais de referência.
Os pacientes dos Campos Gerais são atendidos em estabelecimentos de Curitiba e no Hospital São Camilo em Ponta Grossa, que funciona no prédio do extinto Franco da Rocha hospital especializado que fechou em 2004 após a reforma psiquiátrica. Hoje o São Camilo tem 35 leitos gerais e 31 psiquiátricos, e mais 30 psiquiátricos são preparados para entrar em funcionamento nos próximos meses.
Concentração imprópria
Para o promotor da área de saúde em Ponta Grossa Fuad Faraj, a concentração do atendimento no São Camilo é "imprópria" porque o atendimento deve ser descentralizado. Ele afirma que pretende obrigar os hospitais gerais do Paraná a cumprir as portarias do Ministério da Saúde, seja através de um termo de ajustamento de conduta ou de uma ação civil pública. Por enquanto, comenta o promotor, quem não conseguir atendimento em hospitais gerais pode procurar o Ministério Público de sua cidade para viabilizar a oferta do serviço.
A coordenadora da Divisão de Saúde Mental da Secretaria Estadual de Saúde, Larissa Yamaguchi, afirma que os hospitais gerais que ainda não se adaptaram às exigências estão se estruturando para atender às portarias, inclusive os regionais. Em alguns casos, segundo ela, o atendimento é prestado, porém, não é classificado como atendimento psiquiátrico e se encaixa em outras especialidades. "Há casos de agressão ou de tentativas de suicídio que envolvem pacientes com transtornos mentais ou com o uso de álcool e drogas", diz.
Desde a reforma psiquiátrica, a internação passou a ser vista como o último recurso para o tratamento do doente mental ou do dependente químico. "É preciso ter um atendimento em rede, que seja realizado desde a unidade básica de saúde até o Caps." O Caps é o Centro de Atenção Psicossocial, que presta atendimento contínuo à pessoa com transtorno mental, porém, não realiza internamentos. A disposição de um leito hospitalar, conforme o presidente da Sociedade Paranaense de Psiquiatria, André Rotta Burkiewicz, é importante em caso de emergências psiquiátricas, como surtos. "Mas os hospitais gerais não atendem. Primeiro, porque é preciso ter uma equipe especializada desde o técnico em enfermagem até o médico e segundo porque há um estigma quanto ao paciente de saúde mental."
Incentivo não amplia número de leitos
Em dezembro, o Ministério da Saúde lançou o programa "Crack, é possível vencer" que prevê a criação de 3,5 mil leitos psiquiátricos no país com o investimento de R$ 670 milhões. A mais recente portaria destina R$ 4 mil por leito psiquiátrico aberto nos hospitais após o envio do projeto e a aprovação pelo ministério.
Porém, as vagas na área continuariam aquém da oferta ideal. A Organização Mundial da Saúde (OMS) preconiza a existência de um leito psiquiátrico para cada grupo de mil pessoas. O Brasil tem hoje somente 32,6 mil vagas e o Paraná, 2,4 mil. O acesso a esses leitos é feito mediante indicação médica. Se o parâmetro da OMS fosse considerado seria preciso criar mais 158 mil leitos no país e 7,8 mil no Paraná.
Mesmo antes da reforma psiquiátrica, essa meta não era seguida: em 2001 existiam 68,8 mil leitos no país e 5 mil no Paraná. A reforma psiquiátrica foi implantada em abril de 2001 com a Lei 10.216. A lei passou por 12 anos de discussão antes de ser efetivada. A demora ocorreu pela falta de consenso entre os movimentos antimanicomiais e os psiquiatras, que defendiam os modelos tradicionais de tratamento. Com a reforma se estabeleceu o fim do modelo asilar, ou seja, que colocava o doente mental em hospitais fechados, em tratamento contínuo, segregando-os do convívio familiar.
Descentralização
A concentração dos leitos psiquiátricos existentes hoje se dá nos hospitais de referência e nos especializados. No Paraná, segundo a Secretaria da Saúde, somente 211 leitos estão distribuídos nos hospitais gerais. A descentralização é oportuna, na opinião do psiquiatra e professor da área, Luiz Ernesto Lima de Mello. "Um paciente de transtorno mental que precisa de um exame mais detalhado tem tratamento mais acessível em um hospital geral do que em um hospital especializado, que não tem a mesma estrutura de equipamentos", diz.
Conforme o presidente da Sociedade Paranaense de Psiquiatria, André Burkiewicz, a estimativa é de que pelo menos um terço da população precise de atendimento psiquiátrico. Com o avanço do crack e outras drogas, que podem desencadear problemas psíquicos, a necessidade do atendimento especializado deve crescer. Segundo o secretário-geral da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Luiz Carlos Coronel, a orientação do Ministério da Saúde seria aniquilar o internamento de dependentes químicos. "Metade dos Caps não tem médicos e só com análise não tratamos os doentes mentais e os dependentes", opina.