Tudo de que um criminoso precisa para ficar impune é diminuir seus rastros. E uma falha no sistema de fiscalização dos hotéis do Paraná pode estar tornando empresários e autoridades cúmplices de uma série de crimes sexuais contra crianças e adolescentes. Uma investigação feita por professores e alunos de Jornalismo da Universidade Positivo em parceria com a Gazeta do Povo revelou o problema: menores de idade podem se registrar em hotéis do estado sem qualquer documentação, mesmo em companhia de adultos, o que facilita a ação de pedófilos e de redes de exploração sexual.
Sob a orientação de duas professoras, durante cinco meses oito alunos da universidade visitaram estabelecimentos em cinco cidades: Curitiba, Foz do Iguaçu, Paranaguá, Guaratuba e Matinhos. A reportagem fez um teste simples: pediu a uma adolescente que tentasse se registrar em 33 hotéis. Acompanhada de um repórter, a menina, de 17 anos, conseguiu entrar sem problemas em 29 deles. Foi barrada apenas em quatro, como a lei exige que ocorra em todos os casos. Isso significa que, do total de hotéis pesquisado, 88% descumpriram uma obrigação legal.
A amostra escolhida revela que o problema não está apenas em hotéis de beira de estrada ou de alta rotatividade, como alguém poderia imaginar. A reportagem visitou meios de hospedagem de diferentes padrões: de hotéis de luxo até aqueles que só aceitam registro por algumas horas de permanência. E nem sempre o tratamento foi melhor nos hotéis mais caros. Mesmo porque a vigilância, que é bastante simples, não tem custos nesse caso: é uma mera questão de atenção e boa vontade.
Proteção
Os hotéis são parte fundamental da barreira que a sociedade pode erguer contra casos de exploração sexual. Se os criminosos não tivessem locais como esses para cometer seus crimes, dificilmente ocorreriam casos como o de Rachel Genofre, morta aos 9 anos por um pedófilo possivelmente em um hotel de Curitiba, em 2008. É para evitar histórias como essa que a lei exige determinados cuidados por parte das empresas. "A facilidade de entrada de menores em hotéis agrava bastante a questão da exploração sexual de menores", explica Juliana Sabbag, coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil.
A legislação obriga os estabelecimentos a preencherem a Ficha Nacional de Registro de Hóspedes. É preciso informar nome completo, o número da carteira de identidade e o tempo de estadia. Além disso, menores de 18 anos, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não podem se hospedar em hotéis desacompanhados de pais ou responsáveis ou sem sua autorização expressa.
Durante a pesquisa feita pela reportagem, foram identificados dois tipos diferentes de irregularidades. Em uma das situações, os hotéis não pediam os dados. Em outra, pediam as informações, a adolescente mostrava sua identidade e, mesmo assim, sua entrada era permitida.
Recepcionista burla leis com "um jeitinho"
O Hotel Paraty, no Centro de Curitiba, foi o ponto de partida da série de investigações. Logo na entrada percebia-se o descaso com a identificação de quem entrava. O repórter não precisou apresentar documentos, apenas preencheu uma ficha sem que seus dados fossem confirmados. O funcionário até desconfiou da situação, mas não barrou a entrada. "Poder não pode, mas a gente dá um jeitinho", afirmou sobre a entrada da acompanhante adolescente.
O Hotel Granville, também no Centro, foi outro que não solicitou documento. A ficha foi preenchida pelo próprio repórter e o nome da adolescente foi apenas anotado no verso da ficha, sem que nenhuma identificação fosse pedida prática que se repetiu em diversos outros estabelecimentos.
O Mercure Curitiba Golden Hotel, no bairro Batel, tem cartazes nas paredes contra a exploração sexual de menores de idade e a televisão interna exibe programas declarando que o estabelecimento não permite a entrada de adolescentes desacompanhados e sem a autorização dos pais. Mesmo assim, o cadastro da equipe de reportagem foi feito em nome da própria adolescente. O documento foi pedido, mas a idade dela foi desconsiderada.
Quatro hotéis foram investigados em Paranaguá, onde a equipe constatou um comportamento adequado apenas em um deles: o San Rafael. A funcionária exigiu todos os documentos necessários e chegou a cadastrar o repórter, mas, ao perceber que um dos hóspedes tinha menos de 18 anos e não possuía autorização dos pais, barrou a entrada. Na região de Matinhos e Guaratuba, no Litoral, e em Foz do Iguaçu, apenas um hotel não permitiu a entrada da adolescente. O Hotel Santa Paula alegou que sem a autorização autenticada a adolescente não poderia hospedar-se.
Setor resiste em reconhecer que há exploração
A exploração sexual infanto-juvenil ocorre em Curitiba, como em outras grandes cidades brasileiras, ainda que setores indiretamente envolvidos não reconheçam o problema. Em muitos casos, hotéis são o local escolhido para esse tipo de crime. Camila e Bianca (nomes fictícios) são duas adolescentes que viveram histórias desse gênero na cidade. Quando eram menores de idade, as duas frequentavam hotéis para fazer programas.
Bianca usava o documento de uma amiga mais velha para entrar nos estabelecimentos. Muitas vezes, os recepcionistas nem chegavam a solicitar informações. "Uma vez, num hotel no Centro, estava com um cliente do exterior. Por ser um hotel bem bonito, fiquei com medo, mas ninguém me pediu documento", conta. Camila também viveu situações semelhantes em estabelecimentos no Centro, Boqueirão e Pinheirinho. "Nunca fui barrada em nenhum hotel. Em alguns casos, os funcionários até ligavam para mim para avisar que havia um cliente novo", diz.
Parte da rede hoteleira relativiza o problema, ainda que o reconheça em alguma medida. "Curitiba não é uma cidade litorânea e a população é estressada com os afazeres cotidianos", diz o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis, Henrique Lenz César Filho. "É difícil que algum turista venha para cá para fazer turismo sexual. O nosso povo é mais exigente e até mais culturalmente evoluído que o resto do Brasil. Não é que não exista, mas o índice é muito pequeno", afirma.
O diagnóstico é contestado por Juliana Sabbag, coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil. "Não só nas principais cidades como Curitiba, Foz do Iguaçu e no Litoral. O problema existe no interior também e em todo o estado."
Colaboraram Amanda Bacilla, Amanda Lima, Matheus Klocker, Tayná de Campos Soares, Thomas Mayer Rieger, Renata Silva Pinto e Paola MarquesEsta reportagem foi produzida pelo Núcleo de Jornalismo Investigativo da Universidade Positivo sob a orientação das professoras Rosiane Correia de Freitas e Elza de Oliveira.