Uma constatação recente deixou pais e educadores em alerta: livros didáticos com teor político-ideológico estão sendo usados nas escolas públicas e privadas do Brasil. O Ministério da Educação (MEC) vetou uma coleção de História por veicular propaganda ideológica, mas publicações semelhantes continuam a ser usadas. O tema ganhou editoriais nos principais jornais do país, inclusive na Gazeta do Povo. O Paraná entra na polêmica pelas páginas do Livro Didático Público, no qual a disciplina de Educação Física apresenta conteúdo ideologizado.
"Nas escolas estaduais, grande parte dos diretores e professores está transformando problemas pedagógicos em casos de polícia. Ideologia dominante ou incompetência? Eis uma questão a investigar." Quem afirma é Araci Asinelli da Luz, doutora em Educação, professora do setor de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do Programa de Extensão Universitária Com Viver, cujo foco é a educação preventiva integral junto à infância e adolescência em situação de vulnerabilidade social.
A escola idealizada por Araci é um espaço de circulação de idéias, de relações humanas e debates que permitam à pessoa construir o seu conhecimento o oposto da ideologização, que, como forma de dominação, impõe um único modo de pensar. Leia a seguir a entrevista com a doutora em Educação.
É possível uma educação sem doutrinação, já que se posicionar diante das coisas é uma atitude inerente ao saber?
Entendo a doutrina como um conjunto de princípios que servem de base a um sistema filosófico, religioso, político, por exemplo. A educação é uma das formas de se exercitar a doutrina. Desse modo, uma educação sem doutrina seria alienante em sua essência, até porque a educação é política por excelência e, por isso, dotada de uma intencionalidade, nem sempre claramente posta. Mas está lá, porque envolve o aprender e também o ensinar.
O que os pais podem fazer ao perceber que o filho dá sinais de estar sendo cooptado ideologicamente na escola?
A escola é um espaço de circulação de idéias, relações humanas, discussões e debates para que o conhecimento possa ser construído de forma única em cada pessoa que ali está. Portanto, deve promover a diversidade das informações. A ideologização na escola prevê que um único modo de pensar e agir esteja ali presente, não porque as pessoas pensam igual, mas porque está sendo imposto, como uma forma de dominação. O ideal é a família, de antemão, conhecer a proposta político-pedagógica da escola, sua filosofia de trabalho e conhecer quem são os professores de seus filhos e filhas para evitar surpresas por vezes desagradáveis. A ideologização não ocorre ainda na formação dos professores na universidade? Se há doutrinação, ela é feita mais nas instituições públicas ou privadas?
A doutrinação acontece em todos os espaços: nas catequeses, nos partidos políticos, nas Assembléias Legislativas, nas Câmaras de Vereadores, nas redes de televisão, nos editorias dos jornais, nas Federações das Indústrias, nas secretarias de governo, em todos os níveis. Vide o caso Renan Calheiros, o caso nepotismo no estado. É só ler e seguir os diferentes noticiários. Mas, referindo-se especificamente ao espaço escolar, creio ser difícil que ocorra nas instituições privadas, pois seu foco é outro e não dá lucro. Nas instituições públicas de ensino fundamental e médio, é muito difícil de ocorrer em função da diversidade de professores e a sua forma de acesso. Também a forma como têm sido escolhidos e eleitos os diretores e representantes para as diferentes instâncias tem sido muito mais focada no modelo corporativo do que ideológico ou doutrinário. E assim também nas universidades.
Até que ponto as convicções políticas do governante de ocasião interferem na abordagem feita nas escolas sobre determinados assuntos?
Muito pouco ou quase nada. Na sala de aula o professor e seus estudantes têm autonomia para decidir como aprender e ensinar. Quanto às questões sociais, ou os chamados temas sociais contemporâneos, as escolas municipais de Curitiba e algumas particulares estão buscando entendê-los e enfrentá-los por meio da metodologia de projetos. Nas escolas estaduais, grande parte dos diretores e professores está transformando problemas pedagógicos em casos de polícia. Ideologia dominante ou incompetência? Eis uma questão a investigar.
O Livro Didático Público da disciplina de Educação Física, produzido pela Secretaria de Estado da Educação, apresenta uma linha pró-marxista. Que significado isso tem para o ensino no Paraná?
Não li o livro de Educação Física. Tive notícias dele apenas pelos jornais. O livro de Biologia não tem essa conotação tão marcante, dando abertura para outras discussões. Embora eu perceba sim, em muitas atitudes e documentos oficiais da Secretaria de Estado da Educação, esse encaminhamento ou uma certa diretriz ideologizante, como por exemplo nos documentos e orientações do Plano de Desenvolvimento da Educação, o PDE. E isso não é ruim quando é assumido claramente, pois dá abertura para questionamentos e discussões necessários a uma educação crítica de qualidade. A questão é que aparece, muitas vezes, de forma dissimulada. E isso não tem nada a ver com Marx ou sua teoria.
No caso do professor que adota, pessoalmente, alguma ideologia, qual a postura correta que ele deve ter em sala de aula, diante de assuntos que envolvam essa ideologia?
É ético que nenhuma ideologia seja posta como premissa no espaço da educação. No entanto, não se pode desvincular o que se é, daquilo que se acredita. Então, o professor pode expor seu ponto de vista, apresentando também as demais teorias divergentes da sua, inclusive propondo-se a abrir um espaço democrático para que convidados venham discorrer sobre elas. O jornal O Estado de S. Paulo de domingo passado mostra que o mercado do livro didático no país chegará ao fim deste ano com um recorde de 152 milhões de exemplares. Não só isso, o Ministério da Educação é o maior comprador de livros do mundo. Sendo assim, as editoras não estariam, de certa forma, propensas a "agradar" este cliente com um conteúdo mais aproximado à sua linha político-ideológica?
O mercado do livro didático é perverso. Impõe uma concorrência desigual para as editoras comprometidas também com o pedagógico. Lembro-me bem de um livro de Nelson de Luca Pretto, sobre os livros didáticos de ciências, na década de 80, em que denunciava uma fraude editorial que era responsável por um determinado livro ser o campeão de vendas em todo o país e, em especial, no estado da Bahia. E tudo o que ali estava era "doutrinariamente" passado a tantas crianças. Mudou a estética, mas não mudou a "ética".
No caso do Paraná, os professores não se sentem constrangidos de ter de abordar com os alunos um conteúdo ideologizado com o qual talvez não concordem?
Se forem educadores, além de professores, saberão provocar o debate e a análise crítica. Também se está colocando muita força no livro didático oficial. Ele não dá conta de tudo e é complementar ao trabalho do professor. Quanto ao conteúdo ideologizado, nada é tão neutro ou tão engajado como parece. E não é questão de governo, pois não vemos essa "ideologização" na saúde, no meio ambiente e em outras secretarias. E, ao final, tudo ficará como era antes.
Araci Asinelli da Luz,Doutora em Educação, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).