Nos últimos meses, dois casos de tentativa de interferência de cidadãos para evitar abortos ganharam evidência no Brasil: o da criança de dez anos que teve seu filho morto em um hospital de Recife, depois de protestos populares que não conseguiram impedir a tragédia, e o do padre condenado pelo STJ – com decisão confirmada pelo STF – a pagar uma indenização por ter impetrado um habeas corpus em 2005 evitando o aborto de um bebê que morreu logo depois.
Ambos os bebês, coincidentemente, estavam próximos dos cinco meses de gestação na época em que morreram. E, em ambos os casos, a maneira como se tentou impedir o aborto foi alvo de críticas.
No caso do aborto em Recife, militantes pró-vida se reuniram na entrada do hospital – alguns agindo de forma pacífica, outros de maneira agressiva. Eles protestavam contra as circunstâncias esdrúxulas da autorização dada pelo juiz para o procedimento: o aborto, segundo uma definição da Organização Mundial da Saúde (OMS) adotada internacionalmente e que consta em nota técnica do Ministério da Saúde, só pode ocorrer – nos casos em que não for crime – até as 22 semanas de gestação (ainda que o Código Penal brasileiro, em seu artigo 128, não estipule um prazo para não penalizar o aborto em casos de estupro), já que depois desse período a vida fora do útero é viável. A bebê havia acabado de completar 23 semanas de gestação no dia do aborto, segundo médicos que acompanharam o caso.
No caso do padre condenado pelo STJ, com decisão confirmada pelo STF, a família da bebê descobriu que ela tinha síndrome de body stalk, uma malformação que impossibilita a vida fora do útero, e conseguiu autorização da Justiça de primeiro grau para fazer o aborto. Para impedir o procedimento, o padre impetrou um habeas corpus, concedido em outubro de 2005 por um desembargador do Tribunal de Justiça de Goiás. O aborto não foi realizado, e a criança nasceu e morreu logo em seguida. Para o padre Lodi, isso não foi uma derrota, porque ele acredita que a criança precisava ter assegurado o seu direito de vir ao mundo e ter um enterro digno.
Esses dois casos recentes suscitam algumas questões: é dever moral do cidadão interferir para evitar um aborto, que é um crime no Brasil? E, caso seja um dever, qual é a forma mais apropriada de agir?
É necessário agir, mas meio a ser empregado depende da circunstância
O advogado Gustavo França, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que “não atentar contra a vida humana e defendê-la são deveres morais absolutos”, que “qualquer cidadão tem a obrigação de evitar, de todos os modos possíveis, a agressão à vida própria e alheia” e que o aborto é “flagrante agressão à vida alheia, à vida de uma criança inocente”.
No entanto, segundo França, os meios a serem empregados por cada cidadão para evitar esse mal devem depender das circunstâncias. Ele usa uma analogia: “Se vejo uma pessoa se afogando, devo socorrê-la. Se for um exímio nadador, pularei na água. Do contrário, gritarei por socorro. Ambas as ações, embora externamente muito diferentes, se movem pelo mesmo princípio (ajudar os demais). Se não sei nadar e me atiro na água, ajo mal, embora siga o princípio correto, porque escolho os meios inadequados, conforme as circunstâncias.”
Diante da iminência de um aborto, França diz que é preciso sopesar as particularidades de cada caso e avaliar “se realmente dispomos de um meio adequado de ‘interferir’ e qual seria esse meio mais eficaz”. “É necessário que nossa interferência não cause males maiores do que aquele que queremos evitar. Assim, num exemplo óbvio, não podemos, para evitar um aborto, explodir um hospital inteiro, com centenas de pessoas dentro”, afirma.
Outros aspectos a serem levados em conta em uma decisão prudente de como agir para evitar o aborto são a legislação e as circunstâncias institucionais de cada país. “Se a lei, infelizmente, permite o aborto em alguns casos (ou em todos, como em alguns países), e todo o aparato institucional está constituído para admiti-lo, se eu tentar ‘interferir’ em cada aborto usando a força, provavelmente apenas criarei desordem, serei preso, e nenhum aborto será evitado”, diz França.
Que cuidados jurídicos é necessário tomar ao tentar intervir para evitar um aborto
O jurista André Gonçalves Fernandes, pós-doutor em Filosofia do Direito pela Unicamp e professor-visitante da Universidade de Navarra (Espanha), diz que havia no Brasil, antes do Código Civil de 2002, um ente jurídico chamado de “curador”, aplicado a um cidadão que zelava por certos bens basilares da sociedade, como família, vida e educação.
Por exemplo, antes da lei que instituiu a possibilidade do divórcio no Brasil, segundo Gonçalves, existia o chamado “curador do vínculo”, um advogado que o juiz nomeava para resguardar o vínculo conjugal. No caso do direito à vida, existiu durante muito tempo o curador de menores, cuja atuação era extensiva aos fetos.
Hoje, o instituto do curador não existe mais na legislação brasileira, mas ele pode ser substituído pela figura de terceiros interessados – no caso do aborto, por exemplo, por associações pró-vida.
Diante da decisão do STJ que condenou o padre Lodi a pagar uma indenização por ter impetrado um habeas corpus contra um aborto, Gonçalves recomenda cautela a quem sentir o dever de agir de forma parecida. “Com essa decisão, a segurança jurídica ficou bastante abalada”, diz.
Ele recomenda “evitar que particulares, pessoas físicas, tomem a frente na defesa desses interesses”. “Se for pessoa física, que tenha a grana para segurar a onda depois”, afirma. “Procuraria o intermédio de personalidades jurídicas, de associações constituídas que têm por objeto social a defesa da vida. Assim você consegue diluir, em caso de eventual condenação, o prejuízo, e consegue fazer crowdfunding para cobrir um eventual déficit dessa associação que sair na defesa em habeas corpus de pessoas humanas. Você tem um colchão patrimonial que, se não evita, pelo menos minimiza eventual prejuízo e a carga da indenização”, explica Gonçalves.
Instituições cristãs atendem mães que consideram aborto
Nos dois casos de repercussão recente, a tentativa de interferência ia contra o desejo das famílias das crianças, que queriam o aborto. Mas, em muitos outros casos, a mãe que considera fazer um aborto não está segura sobre o que pretende fazer. Nesse ponto, a intervenção de algumas instituições cristãs tem ajudado algumas mães a buscarem alternativas à decisão de abortar.
Uma delas é o Brazil4Life, que tem centros em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Gonçalo (RJ), Ibirité (MG) e em Illinois, nos Estados Unidos. Sua fundadora, Iná Sobolewski, mora nos EUA e se inspirou em uma iniciativa americana para fundar, em 2000, uma associação no Brasil – o que explica o nome em inglês. O objetivo da instituição, segundo Iná, é ser “um ombro amigo”.
“Existe uma forte correlação entre aborto e problemas de saúde mental. O Brazil4Life ajuda as mulheres a escolher a vida para seus bebês e permanece com elas até que possam caminhar por si próprias. Venho fazendo esse trabalho há 26 anos e, até hoje, nunca encontrei uma mulher que se arrependeu de ter escolhido a vida para seus bebês, e nunca encontrei uma que esteja feliz e orgulhosa de ter abortado”, afirma.
O Brazil4Life já assistiu cerca de 12 mil mães desde 2000 e tem 26 núcleos de ajuda espalhados pelo Brasil. “Recentemente, começamos a receber pedidos de ajuda de mulheres em dois países de língua portuguesa da África”, conta a fundadora da instituição.
Para Iná, a grave negligência da sociedade em relação aos casos de abuso não pode ser compensada pelo aborto. “O caso da menina de 10 anos não começou quando a mídia tomou conhecimento. Essa menina vinha sendo abusada desde os seis anos de idade. A família e os vizinhos certamente tinham conhecimento dos abusos. Simplesmente ignoraram. Tudo isso poderia ter sido evitado se alguém ciente do problema denunciasse o caso de abuso. Milhares de meninas e meninos são abusados diariamente no Brasil. Os sinais são óbvios, mas o que estamos fazendo para amenizar o sofrimento desses inocentes? Com certeza, matar o bebê, que não tem culpa de nada, não é a solução. Os estupradores, abusadores e homens irresponsáveis em geral amam o aborto. É a melhor forma de ‘apagar’ o terrível crime que cometeram. O aborto não é a saída”, afirma.
O Brazil4Life não é a única iniciativa do tipo no Brasil. No Distrito Federal, por exemplo, a associação Santos Inocentes trabalha desde 2002 com a missão de “resgatar a vida de crianças em gestação que correm o risco de serem abortadas e dar apoio psicológico, espiritual e material às mulheres grávidas carentes e a seus filhos”, conforme o site da instituição.
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