A grande surpresa desta quarta-feira (22) foi a notícia, veiculada nos principais jornais do mundo – inclusive na Gazeta do Povo –, de que o Papa Francisco, contrariando a doutrina da Igreja Católica, teria se posicionado a favor do casamento e do reconhecimento civil da união entre homossexuais. A revelação estaria no documentário “Francesco”, do russo Evgeny Afineevsky, exibido pela primeira vez no Festival de Roma, o que seria uma afronta ao que a ortodoxia católica defendeu desde sempre.
Rapidamente, a notícia se espalhou. O New York Times usou como manchete: “Pope Francis, in Shift for Chuch, Voices Support for Same-Sex Civil Unions” ("Papa Francisco, numa reviravolta para a Igreja, expressa o apoio a uniões civis entre pessoas do mesmo sexo"). O The Wall Street Journal saiu na mesma linha: “Pope Francis Backs Civil Unions for Gay Couples, in Shift for Vatican” ("Papa Francisco apoia uniões civis para casais gays, em mudança para o Vaticano"). O inglês The Guardian foi direto com “Pope Francis backs same-sex civil unions” (Papa Francisco apoia uniões civis para casais gays") e o francês Le Monde escreveu: “Le pape François dit ‘oui’ aux contrats d’union civile pour les couples homosexuels” ("Papa Francisco diz 'sim' aos contratos de união civil para casais do mesmo sexo"). Os italianos seguiram na mesma toada: “Coppie gay, Papa Francesco: ‘Sí a legge sulle unioni civili’” ("Casais gays, Papa Francisco: 'Sim a leis sobre uniões civis'"), disse o La Reppublica; “Il Papa: ‘Favorevole alle unioni civili per le coppie omosessuali’” ("O Papa: 'favorável às uniões civis para os casais homossexuais"), deu o Corriere della Sera.
A notícia, no entanto, está enviesada.
Na verdade, as palavras do Papa são retiradas do contexto, editadas e traduzidas de forma errada para o italiano e o inglês, o que pode ter sido a causa para a repercussão equivocada. Se consideradas as palavras literais usadas pelo Papa, o que Francisco faz é defender a proteção jurídica de homossexuais. E não muda em nada a doutrina da Igreja Católica.
O trecho do documentário que causou polêmica – em que o Papa teria dito, em espanhol, a frase: "Las personas homosexuales tienen derecho a estar en la familia, son hijos de Dios, tienen derecho a una familia. No se puede echar de la familia a nadie ni hacerle la vida imposible por eso. Lo que tenemos que hacer es una ley de convivencia civil. Tienen derecho a estar cubiertos legalmente. Yo defendí eso." – é formado por fragmentos editados de uma entrevista feita com o Papa pela emissora mexicana Televisa. A transcrição da entrevista tal como foi exibida pela emissora pode ser lida na íntegra nesta página.
Segundo o site católico Acidigital, o trecho final da declaração exibida no documentário – em que o Papa diz: "Lo que tenemos que hacer es una ley de convivencia civil. Tienen derecho a estar cubiertos legalmente. Yo defendí eso." ("O que temos que fazer é uma lei de convivência civil. Têm direito a estar cobertos (protegidos) legalmente. Eu defendi isso.") – faz parte da mesma entrevista, mas nunca tinha sido exibido pela Televisa.
Parte da fala original do Papa Francisco pode ser lida abaixo, com os trechos selecionados pelo documentário em negrito. Fica claro que a fala do Pontífice foi editada substancialmente:
"Mi hicieron una pregunta en un vuelo - después me dio rabia, me dio rabia por cómo la transmitió un medio - sobre la integración familiar de las personas con orientación homosexual, y yo dije: las personas homosexuales tienen derecho a estar en la familia, las personas con una orientación homosexual tienen derecho a estar en la familia y los padres tienen derecho a reconocer ese hijo como homosexual, esa hija como homosexual. No se puede echar de la familia a nadie ni hacer la vida imposible por esa... Otra cosa es - dije - cuando se ven algunos signos en los chicos que están creciendo y ahí mandarlos... tendría que haber dicho 'profesional', me salió 'psiquiatra'. Quise decir un profesional porque a veces hay signos en la adolescencia o pre adolescencia que no saben si son de una tendencia homosexual o es que la glándula timo no se atrofió a tiempo, vaya a saber, mil cosas ¿no? Entonces un profesional. Título de ese diario: "El Papa manda a los homosexuales al psiquiatra". ¡No es verdad! Me hicieron esa misma pregunta otra vez y yo la repetí: 'Son hijos de Dios, tienen derecho a una familia, y tal". Otra cosa es... Y expliqué: me equivoqué en aquella palabra, pero quise decir esto. 'cuando notan algo ra….' "Ah es raro...". No, no es raro. Algo que es fuera de lo común. O sea, no tomar una palabrita para anular el contexto. Ahí, lo que dice es 'tiene derecho a una familia'. Y eso no quiere decir aprobar los actos homosexuales, ni mucho menos."
Com as edições feitas pelos autores do documentário, a fala do Papa foi apresentada, em tradução livre, da seguinte forma:
“As pessoas homossexuais têm direito a estar na família, são filhos de Deus, têm direito a uma família. Não se pode tirar ninguém da família, nem tornar sua vida impossível por esse motivo. O que temos que fazer é uma lei de convivência civil. Têm direito a estar cobertos (protegidos) legalmente. Eu defendi isso”.
Mesmo se a fala editada fosse reconhecida como uma declaração do Papa, não se pode dizer que ele propõe equiparar a convivência de duas pessoas do mesmo sexo ao casamento civil. O Pontífice pede que as pessoas sejam protegidas legalmente, como ele propôs no passado, por exemplo, quando era arcebispo de Buenos Aires. Em 2010, antes de ser Papa, Jorge Bergoglio se posicionou contra uma lei que legalizava a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Na época, escreveu que a lei poderia “ferir gravemente a família”. Ao mesmo tempo, não se opôs a que houvesse leis específicas que regulamentassem questões como herança, partilha de bens, etc.
A frase “una ley de convivencia civil” foi traduzida como “una legge sulle unione civili”, em italiano, e “a civil union law”, em inglês, que podem ser interpretadas como uma postura favorável de tratar essas uniões da mesma forma como o casamento civil.
Assim que as palavras do Papa começaram a ser divulgadas de forma distorcida, representantes de comunidades LGBT e de organizações "progressistas" (na verdade, permissivas nos costumes) comemoraram, como se a manifestação fosse um sinal de que a Igreja Católica pudesse mudar o entendimento milenar e passasse a aprovar os relacionamentos homossexuais. O que, de fato, não ocorreu.
Combater o erro, não as pessoas
A Igreja sempre considerou a relação sexual entre pessoas do mesmo sexo como incompatível com a dignidade humana, ao mesmo tempo em que condena a violência contra os homossexuais.
São vários textos do magistério da Igreja que condenam a equiparação das uniões entre pessoas do mesmo sexo com o matrimônio, por considerar um mal para os próprios envolvidos. O texto "Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais", da Congregação para a Doutrina da Fé, diz, por exemplo, que "não existe nenhum fundamento para equiparar ou estabelecer analogias, mesmo remotas, entre as uniões homossexuais e o plano de Deus sobre o matrimônio e a família".
Na Exortação Apostólica Amoris laetitiae (“A Alegria do Amor”), o Papa Francisco, no número 251, reforça essa ideia e se manifesta claramente contra a união homossexual. “No decurso dos debates sobre a dignidade e a missão da família, os Padres sinodais anotaram, quanto aos projetos de equiparação ao matrimônio das uniões entre pessoas homossexuais, que não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimônio e a família”.
Ao mesmo tempo, são inúmeras também as exortações da Igreja ao respeito e compaixão por pessoas homossexuais. O ponto 2.358 do Catecismo da Igreja Católica diz que os homossexuais devem "ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta".
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