O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), autarquia do governo federal, concedeu até o momento 91,7 mil títulos de propriedade a produtores rurais beneficiários da reforma agrária em 2021. A estimativa do instituto é atingir, ainda neste ano, 130 mil entregas de títulos provisórios e definitivos para agricultores familiares nos mais de nove mil assentamentos do país.
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Caso a meta seja alcançada, será a entrega mais numerosa nos últimos anos. Desde a sanção da Lei 13.465/2017, que instituiu mecanismos para aumentar a eficiência da titulação e regularização de terras em áreas rurais sob domínio da União, os números de entregas de títulos aos agricultores têm aumentado. Em 2016, um ano antes da sanção da lei, houve a entrega de 17,3 mil documentos, de acordo com o Incra. Já em 2018, um ano após a vigência das novas regras, foram concedidos 78,6 mil títulos – um aumento de 354%.
Na prática, a concessão dos títulos representa a “conclusão” do processo de reforma agrária para os agricultores que integram os assentamentos. Segundo o Incra, esse processo tem início na desapropriação das terras e no assentamento das famílias nesses locais. A etapa seguinte é o investimento de recursos públicos em infraestrutura para as famílias de produtores rurais, com o objetivo de fornecer a elas as condições de produção. Os próximos passos são a titulação provisória de terra aos agricultores, que é sucedida da titulação definitiva.
Dentre as concessões fornecidas pelo governo, estão os títulos provisórios – chamados Contrato de Concessão de Uso (CCU), que permitem às famílias residir, explorar e produzir, porém não autorizam a venda, o arrendamento ou transferência para terceiros – e os títulos definitivos, chamados de Título de Domínio. As concessões definitivas significam a transferência do lote para a família assentada, permitindo, por exemplo, venda ou transferência por herança.
As concessões também permitem às famílias participar de mais políticas públicas voltadas a pequenos produtores agrícolas, bem como possibilitam o acesso a linhas de crédito.
David de Souza Barbosa, produtor rural do assentamento Terra Conquistada, município de Água Fria de Goiás (GO), afirma que o recebimento dos títulos contribui para o desenvolvimento das áreas, uma vez que as famílias passam a ter acesso a crédito para investir na produção em suas terras. “As pessoas não conseguiam desenvolver porque, como não eram proprietárias da terra, não tinham acesso ao crédito; a terra era do governo. Então o banco não queria 'nem ver' o contrato que a pessoa tinha com o Incra”, diz o agricultor.
“Como o produtor não tinha garantia de que era dono da terra e de que iria continuar lá, às vezes até tinha alguma condição de investir, mas não investia justamente porque não tinha essa garantia de propriedade. Ele podia investir e perder, era muito instável”.
Raimundo da Conceição, produtor rural do assentamento Nova Amazônia, localizado em Boa Vista (RR), recebeu o título definitivo em 29 de setembro, após 17 anos trabalhando no local. O agricultor destaca a importância de poder vender a terra, caso deseje, e de poder transferi-la para seus filhos como herança. “Cheguei aqui em 2004 e venho sempre batalhando por esse título, que chegou em boa hora”, diz Conceição.
Mudança nas regras e aumento de concessões
A Lei 13.465, de 2017, é originária da Medida Provisória (MP) 759, editada pelo ex-presidente da República Michel Temer (MDB) em dezembro de 2016. A lei alterou as regras para a regularização de terras urbanas, rurais e da Amazônia Legal. No âmbito rural, as novas regras modernizaram a regularização de terras e simplificaram o processo de titulação aos agricultores.
Uma das principais mudanças está na cessão gratuita dos documentos aos produtores rurais de terras com área de até um módulo fiscal (unidade de medida agrária baseada no número de hectares, que varia de acordo com cada município) e na redução do preço a ser pago pelos agricultores por propriedades maiores a uma fração do preço de mercado. Para os lotes de assentamento, os valores a serem pagos começam em 10% do valor de mercado das terras e podem chegar a até 30% desse valor. A nova legislação também prevê o desconto de 20% do valor para quitações à vista e prazo de 20 anos para pagamento parcelado, com três anos de carência.
“A lei alterou os requisitos de ingresso, permanência e titulação dos beneficiários da reforma agrária. Fez ajustes necessários atualizando a legislação e atendendo a recomendações do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a questão da permanência das famílias e do processo de seleção”, informou a assessoria do Incra.
Conforme dados solicitados pela Gazeta do Povo ao instituto, houve crescimento significativo no volume de entrega dos títulos após a sanção da lei.
Em 2017, ano em que a Lei 13.465 foi sancionada, o número de entregas de títulos foi quatro vezes maior do que o ano anterior. Em 2018, ainda sob gestão de Michel Temer, o volume de entregas se manteve alto e, em 2019, no primeiro ano de Jair Bolsonaro na presidência da República, houve queda. As titulações tiveram nova alta em 2020, superando 100 mil entregas. Para 2021, há estimativa de que o número seja superado.
Para alcançar a meta de 130 mil entregas, o governo criou, em fevereiro deste ano, o programa Titula Brasil, com o objetivo de acelerar os procedimentos de titulação e regularização das áreas rurais a partir de parcerias com prefeituras. “A supervisão ocupacional e a vistoria para a emissão dos títulos eram feitas apenas pelos servidores do Incra. Com o programa, aumentamos a operação dessa vistoria e a celeridade no campo com a ajuda dos municípios”, diz Udo Gabriel Vasconcelos Silva, diretor de Gestão Estratégico do Incra.
O diretor aponta que metade dos cerca de dois mil municípios aptos a participar do programa aderiu à iniciativa. “O objetivo é aumentar o alcance e a capacidade operacional da regularização fundiária, agilizar o procedimento de titulação provisória e definitiva e reduzir o acervo dos processos de regularização com base nas vistorias e supervisões ocupacionais”.
MST é contrário à transferência das terras aos agricultores
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que exerce grande influência em vários assentamentos de reforma agrária pelo Brasil, é contrário ao modelo que tem sido aplicado nas concessões nos últimos anos.
Em nota publicada em seu site a respeito do programa Titula Brasil e de um projeto de lei que facilita as titulações de terras que tramita na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), o movimento cita que “O PL 410/21 apresentado por Dória [João Doria, governador de São Paulo] à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e o Programa Titula Brasil do Governo Federal, estão impondo o Título de Domínio, que permite venda de lotes e negociatas, como único Título Definitivo, o que é mentira. Defendemos a Titulação de Concessão de Direito Real de Uso – CDRU, na qual o direito dos assentados, das futuras gerações e de sucessão, está garantido”.
Por meio do CDRU, os produtores podem explorar a terra a partir de um contrato com o poder público, mas a propriedade permanece sendo do Estado e não passa a ser dos agricultores.
À Gazeta do Povo, Alexandre Conceição, membro da direção nacional do MST disse que as novas regras sobre a concessão de propriedades “facilitam a concentração fundiária, a grilagem de terras e extinguem os critérios que asseguravam a função social da terra e, portanto, da reforma agrária em si”.
“A mudança dessa lei traz em seu bojo a regularização fundiária como a simples titulação do imóvel, quando o conceito anterior previa uma série de medidas associadas à infraestrutura comunitária das famílias assentadas e condições dignas de moradia. Na prática, essas alterações da legislação têm paralisado os processos de regularização fundiária que já estavam em curso”, diz Conceição.
Quanto ao Titula Brasil, ele declara que o programa “cria novos entraves para a democratização do acesso à terra, priorizando a titulação e a entrega das terras públicas e incentivando a grilagem”. “Somos defensores de que o título de terras deve ser coletivo e não privado”, diz o diretor, afirmando que o governo federal “quer acabar com a reforma agrária no Brasil”.
Agricultores dizem que lideranças do MST não têm interesse na concessão dos títulos aos assentados
Produtores rurais ouvidos pela reportagem, que recentemente receberam seus títulos de propriedade, disseram que nos assentamentos comandados pelo MST não há interesse por parte das lideranças do movimento em regularizar as terras e fazer com que os agricultores tenham acesso aos documentos de propriedade.
David Barbosa afirma que, apesar de o grande objetivo dos produtores ser a titulação definitiva, em seu assentamento integrantes do MST tentaram convencer os agricultores de que ter seus títulos no atual momento não seria algo positivo. “Isso colocou dúvida na cabeça das pessoas. Era comum você andar no assentamento e ouvir das pessoas que elas não queriam mais os títulos”.
O agricultor explica que a partir do momento em que os agricultores conseguem o direito sobre as propriedades, eles não dependem mais dos movimentos sociais, o que acaba fragilizando esses grupos. “Os produtores eram reféns dos movimentos sociais. O MST usava os assentados como meio de dominação política. Era um cabresto que tinha ali sobre as pessoas, sobre cada assentado. Então o título foi justamente a faca que cortou esse cabresto”, diz Barbosa.
“Tivemos muitos embates com a militância do movimento por isso. Não conseguíamos desenvolver as atividades no campo, entendíamos que era preciso dar um passo à frente e o título iria ajudar no processo de produção e na venda das terras. Mas nós encontrávamos essa barreira: eles nunca se movimentavam para que isso acontecesse”, salienta
Para Elivaldo da Silva Costa, presidente da Associação dos Pequenos Produtores do Assentamento Rosa do Prado, no município de Prado (BA), o MST tinha benefícios ao manter o controle dos assentamentos, o que fazia com que não houvesse interesse na regularização das terras e, consequentemente, na concessão dos documentos de propriedade.
Ele conta que os agricultores precisavam trabalhar um dia por semana nas roças dos líderes do movimento, eram proibidos de votar em candidatos que as lideranças não aprovassem e eram coagidos a participar de passeatas e manifestações políticas convocadas pelos líderes. Costa diz ainda que em seu assentamento as terras eram sublocadas a fazendeiros, e que esse dinheiro não retornava em benefícios aos assentados.
“A gente não tinha direito sobre nossa propriedade, eles é que mandavam nos nossos lotes, nas nossas vidas, em tudo. Quando o MST começou a ocupar e viu que o negócio era lucrativo, decidiram retardar esse objetivo que era organizar a documentação e chegar ao projeto de assentamento”, afirma. “Ter os títulos das suas terras era uma vontade popular dos assentados nas áreas de reforma agrária. Mesmo assim, vimos famílias morrerem sofrendo, sem essa documentação, sem ter o que era seu por direito”.
A Gazeta do Povo tentou contato com a direção do MST na Bahia para comentarem a respeito dos fatos apontados na matéria, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.
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