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O início do novo governo aparentou ser promissor para a população indígena do país: além da criação do Ministério dos Povos Indígenas, integrantes desses povos foram nomeados em funções no primeiro e segundo escalão do governo. No entanto, um número significativo de etnias que não mais dependem – ou não desejam depender – da caça, da pesca e do assistencialismo para sobreviver vê com preocupação os próximos passos a serem dados pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Trata-se de povos que demandam por desenvolvimento e autonomia econômica para suas comunidades por meio da produção agropecuária e da aquicultura em escala, o chamado etnodesenvolvimento sustentável, a fim de gerar renda e afastar-se da miséria que atinge muitas das etnias. Para isso, há décadas esses povos têm se organizado para tentar mudar a complexa realidade de que apesar de o indígena ser “dono” de 13,8% do território brasileiro, vê-se diante de grandes dificuldades e burocracias para produzir em suas terras.
Por outro lado, a plataforma política do novo governo não vê com bons olhos essa emancipação dos povos indígenas. Segundo fontes ouvidas pela Gazeta do Povo há, na esquerda brasileira e estrangeira, uma visão romantizada de que as populações indígenas devem prioritariamente viver isoladas preservando costumes ancestrais, o que inevitavelmente leva à falta de recursos essenciais de alimentação, saúde, educação e bem-estar desses povos.
“É uma fantasia romântica e utópica acreditar que os povos indígenas de hoje vivem como antigamente, apenas da caça, pesca, coleta de frutos silvestres, de remédios do mato e vivendo nus”, explica o cacique Rony Pareci, que pertence à etnia dos Parecis no Mato Grosso.
Por falta de fontes de renda em suas aldeias e seus territórios, a maior parte dos quase 900 mil indígenas brasileiros (estimativa do levantamento do IBGE feito em 2010) permanece em situação de pobreza ou extrema pobreza. Dificuldades para conseguir a regularização das terras e o licenciamento ambiental perante a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ibama acabam, em vários dos casos, inviabilizando tentativas de desenvolvimento econômico.
Além disso, segundo o artigo 231 da Constituição Federal, as terras não pertencem aos indígenas, mas à União, e cabe a esses povos apenas o usufruto das terras. A consequência disso é que os indígenas nunca terão direito à propriedade, portanto existem grandes dificuldades para ter acesso a linhas de crédito a fim de financiar a expansão das atividades agrícolas.
Por fim, há obstáculos quanto ao comércio das produções, já que grandes empresas, em especial as estrangeiras, deixam de comprá-las por restrições internacionais à importação de itens produzidos em terras indígenas sob a justificativa da preocupação ambiental. Há, ainda, um pequeno número de empresas brasileiras que também deixa de adquirir produtos oriundos desses locais, dificultando o desenvolvimento desses povos.
“Por falta dessas possibilidades e alternativas econômicas, hoje a grande maioria dos povos indígenas vive em situação de miserabilidade social em seus territórios demarcados ou em processo de demarcação”, lamenta o cacique Rony.
ONG pró-Lula emplacou no governo nomes que divergem da emancipação econômica indígena
Exercendo grande influência em todos os assuntos relacionados a temática indígena no governo Lula desde a criação do gabinete de transição, a ONG chamada Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) tem visão contrária à emancipação econômica dos índios por meio da produção em escala. A entidade chegou a organizar, em abril do ano passado, um evento para oito mil pessoas para angariar apoio da comunidade indígena para a candidatura do atual presidente. Foi nesse evento que Lula prometeu pela primeira vez a criação de um ministério indígena.
Com grande prestígio após a eleição do petista, coube à Apib enviar a Lula uma lista com três nomes sugeridos pela ONG para o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas. O nome escolhido foi o da ativista de esquerda Sônia Guajajara (Psol), que é coordenadora executiva da própria Apib, entidade que a indicou. Entretanto os dois outros nomes, igualmente militantes políticos, também assumiram funções no governo – Joenia Wapichana (Rede) tornou-se presidente da Funai e Weibe Tapeba (PT) foi nomeado Secretário Especial da Saúde Indígena (Sesai).
Com os quadros da nova gestão encabeçados por militantes com visão divergente à autonomia econômica indígena e crítica do agronegócio, representantes de diferentes etnias relataram à Gazeta do Povo que há crescente preocupação com o bem-estar dos integrantes das aldeias.
“Agora estamos diante de um governo que é contra o agronegócio. Quando você sai de uma agricultura familiar e cresce um pouco, com certeza isso se enquadra no agronegócio. E a partir desse momento você se torna inimigo deles. São pessoas que estão longe daqui e acham que nós não precisamos de qualidade de vida”, diz Jocélio Leite Paulino, do povo Xucuru, de Pernambuco.
Para Marcelo Xavier, ex-presidente da Funai, o novo governo pode, na prática, vir a suspender o processo de regularização das terras para produção agropecuária. “Os indígenas apresentam os projetos, e a Funai verifica se eles preenchem os requisitos. Se a Funai deixar de analisar ou ‘sentar em cima dos processos’, acabou”, afirma.
Grupo formado por 70 etnias denunciou discursos prejudiciais de ativistas, incluindo da atual ministra
A luta pela regularização de suas terras para torná-las aptas à geração de renda tem como um dos principais representantes o Grupo de Agricultores e Produtores Indígenas, formado por 70 etnias de todas as regiões do país.
Em carta enviada em março de 2021 a instituições como o Parlamento Europeu, o Conselho da União Europeia e o Banco Central Europeu, o grupo já alertava sobre os riscos do posicionamento de Sonia Guajajara, agora ministra, para os indígenas. O motivo da carta foi esclarecer apontamentos trazidos por Sonia em diversas manifestações públicas e em sites alinhados a ONGs autodenominadas defensoras dos direitos indígenas para influenciar governos e entidades estrangeiras. Segundo os signatários da carta, os discursos dela, que reforçam a perpetuação dos indígenas em um modo de vida rudimentar, são bastante prejudiciais a seus povos.
“O fato é que essa gente quer fazer a opinião pública nacional e internacional acreditar que no Brasil todos os Povos Indígenas são iguais e que vivem nas florestas cantando e dançando; pintados e nus; caçando e pescando para sobreviver, felizes e alheios ao mundo exterior”, cita um trecho da carta.
“O que essa indígena e outros vêm fazendo é, em nossa opinião, um crime contra os próprios indígenas, pois muitos já produzem soja, café, pescado e frutas (cacau e castanha do Brasil) que são exportados para vários países, inclusive da Europa, sem destruir a floresta ou outro bioma, pelo contrário, ajudando a cuidar e defender o meio ambiente”, prossegue o texto.
O grupo denuncia, ainda, que muitos dos indígenas brasileiros ainda vivem nas florestas sem energia, sem água tratada, sem saneamento básico, sem internet e sem saber o que a agora ministra e outros ativistas, em especial ligados a ONGs, falam em seus nomes.
“Foi criado um ideal imaginário que diz para a sociedade e para mim mesma que para que eu seja indígena eu tenho que estar vivendo no ano 1.500 enquanto toda a sociedade vive no século 21”.
Índia Silvia Waiãpi
ONGs consideram que preservação cultural está acima do bem-estar dos povos, denunciam indígenas
À Gazeta do Povo, Jocélio Xucuru, um dos porta-vozes do Grupo de Agricultores e Produtores Indígenas, afirmou que há um interesse por parte de ONGs brasileiras e estrangeiras em usar o argumento da preservação ambiental para manter os índios em situação precária. Essas entidades, segundo ele, auferem lucros com repasses de governos, empresas e filantropos ambientalistas ao manterem os índios em estado rudimentar enquanto vivem em grandes metrópoles, afastados da realidade dos povos indígenas.
“O indígena depende das árvores para viver, e com certeza ele vai preservá-las. Agora, se disserem para os índios preservarem e garantirem que não vai haver miséria dentro das comunidades, tudo bem. Mas é fácil a pessoa falar sobre preservação estando em São Paulo ou fora do país, sem ver a nossa realidade”, critica. “Fala-se muito em demarcar as terras, mas quais condições eles vão ter nessas terras? Não tem regularização [para a produção agropecuária], não tem linha de crédito. A terra vai servir para que? Só para ele preservar? Para encher o bolso de ONGs?”, questiona.
Há, de fato, diversas etnias que optam pelo isolamento e preferem manter um modo de vida primitivo afastando-se de atividades agrícolas em escala. Porém, segundo a indígena Silvia Waiãpi (PL), eleita deputada federal pelo Amapá nas eleições de 2022, o discurso encabeçado por ONGs ambientalistas direcionado frequentemente aos próprios indígenas é de que a preservação cultural está acima do bem-estar desses povos.
“Foi criado um ideal imaginário que diz para a sociedade e para mim mesma que para que eu seja indígena eu tenho que estar vivendo no ano 1.500 enquanto toda a sociedade vive no século 21. Isso é imposto aos indígenas, que acabam acreditando que para ser ele mesmo, tem que estar daquele jeito. E com isso nós perdemos o nosso direito à cidadania”, lamenta. “Aí ele, sem poder produzir, acaba vivendo de doação de cestas básicas, de pessoas que usam essas cestas para comprar votos com promessas eleitorais de que virá do Estado a condição para ele mudar de vida”, prossegue.
Na avaliação de Silvia, cerca de 40% dos povos indígenas têm o desejo de se desenvolver em suas próprias terras. Além dela, outras três parlamentares indígenas conquistaram vaga na Câmara dos Deputados, dentre elas Sonia Guajajara. Silvia afirma que o discurso das outras três eleitas, todas com alinhamento político à esquerda, é de preservação, isolamento e segregação das etnias. “Dizem que estão lutando pelos direitos dos indígenas, mas elas estão vivendo no século 21 tomando banho quente, bebendo água gelada e pedindo comida por aplicativo enquanto o povo é obrigado a viver com dificuldade de acesso a tudo”, questiona.
Lidando com multas e burocracia, etnia Pareci emprega 200 indígenas em suas lavouras
Como exemplo dos diversos projetos que apresentam resultados positivos na transformação de suas comunidades estão a produção de grãos da etnia Pareci, no Mato Grosso; a colheita de castanhas dos Cinta Larga, em Rondônia; e a produção de camarão da etnia Potiguara, na Paraíba.
Os Pareci foram um dos primeiros povos indígenas a se dedicar, ainda em 2003, à produção agrícola em escala. Antes do êxito, tiveram que lidar com vários percalços com a Funai e chegaram a ser multados pelo Ibama em mais de R$ 120 milhões, o que foi revisto na gestão anterior da Funai, sob o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Atualmente as lavouras cultivadas pela etnia ocupam 17,5 mil hectares do território total de quase 20 milhões de hectares. Ou seja, menos de 2% do território é usado para as atividades.
Atualmente os Pareci produzem soja, milho, feijões, painço e sorgo, e para isso são empregados cerca de duzentos colaboradores entre as safras, distribuídos em frentes de serviço que vão desde plantio, colheita e transporte até a área administrativa. “Mais de 250 homens e mulheres que trabalhavam fora do território, a grande maioria nas fazendas, retornaram para as aldeias por causa dessa atividade. Hoje as cooperativas geram mais de 100 trabalhos permanentes e mais 100 trabalhos temporários”, explica o cacique Rony Pareci.
O impacto da produção agrícola para toda a comunidade é evidente: o projeto foca na empregabilidade, capacitação e inclusão dos próprios indígenas, além de promover a distribuição de renda de forma igualitária visando o desenvolvimento sustentável e a garantia de sustento para as comunidades. Essa divisão equânime, aliás, é critério exigido pela Funai para a regularização das terras.
A atração de recursos para a comunidade Pareci em primeiro lugar fortaleceu a segurança alimentar ao ajudar a combater a desnutrição, principalmente entre as crianças e idosos. Mas também permitiu ganhos em saúde por meio da aquisição de medicamentos não disponíveis na rede pública, da realização de consultas e exames especializados, da realização de cirurgias em caráter de emergência, dentre outras ações. A educação também chegou à aldeia, e muitos integrantes já são formados ou estão cursando cursos nos níveis técnico e superior.
“Hoje os Pareci têm pessoas formadas como médicos, farmacêuticos, enfermeiros, nutricionistas, pedagogos, advogados, administradores, agrônomos, geólogos, dentre outras áreas”, diz o cacique.
Para Marcelo Xavier, o apoio do governo federal às iniciativas dos povos indígenas é determinante para que outros povos alcancem tais resultados. O ex-presidente da Funai também receia que no governo Lula haja tratamento diferente do que foi dado pela gestão anterior, que priorizou o incentivo a atividades produtivas sustentáveis nas terras indígenas.
“Nenhuma cultura é estática. Se o indígena quiser se desenvolver, por que ele não pode? Qual é o ilícito que ele comete? Ele não é um cidadão como outro qualquer? Mas para algumas pessoas eles não podem fazer isso jamais. Alegam que é perigoso, que destrói a cultura deles. São pessoas que vivem de vender no exterior a imagem do indígena como coitadinho, como indigente”, diz Xavier. “Há um universo que se abriu para as comunidades, um sentimento de liberdade que eles experimentaram que acho que infelizmente essa nova gestão não vai acompanhar. Esse é o meu receio”, finaliza.
Outro lado
A Gazeta do Povo enviou questionamentos ao Ministério dos Povos Indígenas sobre seu posicionamento em relação aos povos que desejam se desenvolver a partir da produção em escala em seus territórios. Não houve retorno até o momento – caso haja, esta reportagem será atualizada.