Ouça este conteúdo
Tudo o que os paresi querem é plantar soja em larga escala, como qualquer fazendeiro do Mato Grosso. A etnia indígena abarca 94 aldeias, espalhadas por uma reserva de 1,3 milhão de hectares. Há mais de 25 anos, os índios locais trabalham com agricultura, mas em terras vizinhas. Em áreas da própria reserva, atuam há 17 anos. Conseguiram adquirir tratores, na busca por competitividade, mas sofrem com uma série de limitações legais. Não conseguem buscar financiamento bancário, por exemplo, porque não têm garantias a oferecer - legalmente, as terras das reservas pertencem à União. E já tomaram dezenas de multas, que somam mais de R$ 120 milhões. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) alega que os índios arrendaram suas terras a fazendeiros, o que é ilegal – os paresi negam as acusações.
“A legislação não permite que tenhamos competitividade em relação aos outros agricultores”, reclama Arnaldo Zunizakae, um dos líderes paresi que conduz o esforço agrícola de sua tribo. A área plantada é relativamente pequena: 19 mil hectares, 1,4% do espaço total da reserva. E não está próxima de mananciais nem de reservas de mata. Na safra de 2018, foram 10 mil hectares de soja colhidos, cujos lucros foram distribuídos entre as aldeias.
Os índios locais não perderam seus costumes e tradições porque resolveram profissionalizar a produção. Apenas estão buscando maior qualidade de vida.
“Não fazemos monocultura. Seguimos a lógica da agricultura de precisão, fazendo a rotatividade de culturas”, diz Zunizakae. “A soja é só uma das nossas atividades, plantamos gergelim, milho. Estamos trabalhando para ser os maiores produtores de feijão da região. E a produção agrícola é a base sobre a qual as famílias apoiam outros projetos, como pecuária, piscicultura e turismo”.
Cooperativa agrícola
Por lei, os indígenas não podem usar sementes geneticamente modificadas. “Somos forçados a trabalhar com material convencional, que precisa de muito mais agrotóxico”, explica Zunizakae.
“Além disso, não podemos vender nossos produtos para grandes compradores, porque o Brasil considera que as terras indígenas são exclusivas para preservação. Ou seja, o país nega aos indígenas o direito de produzir suas riquezas, de busca melhorar a qualidade de vida”.
A alternativa a plantar soja, diz o líder paresi, seria “viver igual os outros índios do Brasil”. Em outras palavras, a tribo busca fugir de uma realidade disseminada:
“A maior parte dos índios do Brasil vive de maneira precária, dependendo de cestas básicas do governo, sem educação de qualidade, nem saúde, cometendo delitos dentro das próprias terras, participando de roubo de madeira e minério das reservas”.
Boa parte desses indígenas se muda para as cidades, diz ele. Ali, definitivamente, perdem contato com a cultura tradicional. “Em busca de algo melhor, muitos acabam nas periferias”.
Apesar de todas as dificuldades, os paresi representam um caso raro de etnia bem-sucedida no empreendedorismo indígena – em 2019, produziram a primeira safra inteiramente bancada por recursos da etnia. No Maranhão, por exemplo, os guajajara mal conseguem plantar o suficiente para se alimentar. “Eu convenci o povo indígena apoiar Bolsonaro, porque ele prometeu estimular a agricultura. Agora queremos apoio do governo para nossas iniciativas”, explica o cacique local, Raimundo Guajajara, que está em Brasília em busca de recursos e suporte para a produção agrícola da etnia, que se distribui por quatro reservas no interior do Maranhão.
“Nossa atividade principal é agrícola, sem ela passamos fome”, afirma o cacique. “Plantamos milho, arroz, feijão, mandioca. Temos uma cooperativa, a Kopyhar, criada para ajudar a comercializar e distribuir nossos produtos. Poderíamos trabalhar com pecuária ou mineração, mas a lei não permite”. Foi na terra dos guajajara, aliás, que dois caciques, Firmino Prexede Guajajara e Raimundo Benício Guajajara, foram assassinados em dezembro passado. Os conflitos armados, geralmente envolvendo funcionários de madeireiras que invadem as reservas indígenas, são comuns.
Abordagem multidisciplinar
De fato, as iniciativas de empreendedorismo entre os indígenas são raras – e muitas delas se resumem à formação de grupos de artesãos com o objetivo de comercializar cocares em pequena escala. Tentativas mais ousadas esbarram em uma série de dificuldades. A principal delas é o fato de que terras indígenas pertencem ao Estado e não podem, por lei, ser utilizadas para atividades agrícolas que descaracterizem uma fração que seja da fauna e da flora locais. Na prática, os índios se veem reféns das próprias reservas, condenados a viver em condições precárias.
Por alguns anos, a seccional do Sebrae no Mato Grosso tentou desenvolver projetos voltados aos indígenas. Mas precisou mudar o escopo das ações. “Hoje, o Sebrae do Mato Grosso não possui iniciativas na área do empreendedorismo indígena. As últimas ações que ocorreram tiveram como temática a educação empreendedora para jovens em escolas de comunidades indígenas ou em escolas rurais próximas de comunidades indígenas”, afirma a assessoria de imprensa do órgão.
Helen Camargo de Almeida, analista técnica que atua na gerência do Centro Sebrae de Sustentabilidade na região, explica melhor o porquê da mudança. “É um universo muito complexo, exige muitas competências, acadêmicas inclusive, para garantir que as iniciativas não descaracterizem a cultura local, não violentem a tradição de cada povo”, diz.
“Esse é um trabalho que requer uma abordagem multidisciplinar. Precisa de um antropólogo acompanhando, para ajudar entender a comunidade, tem que ter sensibilidade para dialogar com eles. Muitas vezes são diferentes lideranças envolvidas, e parte dos envolvidos não quer empreender, porque o dinheiro, vindo de uma vez só, poderia dilacerar a aldeia”. Atualmente, o Sebrae local desenvolve ações de menor porte, na linha do empreendedorismo étnico – por exemplo, atividades de turismo de experiência.
Pedidos de mudanças
O governo vem anunciando a intenção de apoiar o empreendedorismo indígena. Bolsonaro frisou ainda a intenção de expandir áreas de exploração de minérios, mesmo em regiões de reservas indígenas. “O índio não quer ser latifundiário pobre em cima de terras ricas”, citou, recentemente, o presidente. “Especialmente das terras mais ricas do mundo. É o caso das reservas Ianomâmi e Raposa Serra do Sol. Nessas reservas, existe grande abundância de ouro, diamante, urânio, nióbio e terras raras, entre outros”.
Em outra ocasião, em novembro, ele também afirmou: “Nossos índios, a maior parte deles, são condenados a viver como homens pré-históricos dentro do nosso próprio país. Isso tem que mudar. O índio quer produzir, quer plantar, quer os benefícios e maravilhas da ciência, da tecnologia. Todos nós somos brasileiros. Por que reservar um espaço sobre uma terra onde você não pode fazer nada sobre ela? Nós queremos o índio fazendo na sua terra exatamente o que o fazendeiro faz ao lado. Podendo inclusive garimpar.”
Durante seu discurso na ONU, em setembro passado, Bolsonaro leu uma carta do Grupo de Agricultores Indígenas do Brasil, que afirma: “O Brasil possui 14% de seu território nacional regularizado em terras indígenas, e muitas comunidades estão sedentas para que o desenvolvimento desta parte do Brasil finalmente ocorra sem amarras ideológicas ou burocráticas. Isso facilitará o alcance de uma maior qualidade de vida nas áreas de empreendedorismo, saúde e educação”.
O texto reforça: “O ambientalismo radical e o indigenismo ultrapassado e fora de sintonia com o que querem os povos indígenas representam o atraso, a marginalização e a completa ausência de cidadania”. Bolsonaro anunciou em novembro que vem preparando um projeto de lei para buscar mudar essa situação.