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Após a concessão do perdão de pena por parte do presidente Jair Bolsonaro (PL) ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) que, na quarta-feira (20) havia sido condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a 8 anos e 9 meses de prisão em regime fechado, ainda restam dúvidas quanto à possibilidade legal de o parlamentar se candidatar a algum cargo eletivo nas eleições deste ano.
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Além da prisão, a Corte havia decidido pela cassação do mandato e pela suspensão dos direitos políticos de Silveira enquanto durassem os efeitos da pena. A medida tornaria o deputado, que almeja disputar uma vaga ao Senado, impedido de disputar um cargo eletivo. De acordo com Bolsonaro, o perdão concedido a Daniel Silveira abarca não apenas as penas privativas de liberdade, mas também as penas restritivas de direitos, o que garantiria a manutenção dos direitos políticos e de elegibilidade do deputado. Mas alguns juristas entendem que existem brechas na lei para que apenas a prisão de Silveira seja revogada com o indulto, e não esses direitos secundários.
Nesta quinta-feira (21), horas após o anúncio de Bolsonaro sobre o indulto, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), afirmou que o perdão concedido não pode ser revogado pelo Parlamento, mas que a inelegibilidade de Silveira seria mantida.
Para juristas ouvidos pela Gazeta do Povo, como o caso não é usual, ainda não há clareza a respeito de todos os efeitos do indulto, em especial quanto à elegibilidade de Silveira. A maioria das fontes, no entanto, entende que quem dará a palavra final sobre o caso é o próprio STF e não a Câmara dos Deputados.
Inelegibilidade e suspensão dos direitos políticos
Há duas situações jurídicas que podem inviabilizar uma eventual candidatura de Daniel Silveira: a primeira é a inelegibilidade (na qual o cidadão pode votar, mas não pode ser candidato a cargos eletivos), que deriva da Lei da Ficha Limpa. Essa medida prevê que a pessoa condenada fica inelegível a partir da data do julgamento. De acordo com ela, Silveira já estaria impossibilitado de disputar um cargo eletivo a partir de 20 de abril, data em que o STF o condenou.
Por outro lado, juristas ouvidos pela reportagem afirmam que a Lei da Ficha Limpa não prevê condição de inelegibilidade para o caso de condenação penal nos crimes pelos quais o deputado foi julgado.
A segunda situação é a suspensão dos direitos políticos, prevista no artigo 15º da Constituição Federal, que ocorre depois de a decisão judicial ter transitado em julgado. Ao perder os direitos políticos, o cidadão não pode votar e nem se candidatar a cargos eletivos. No caso de Silveira, ele perderia os direitos políticos somente após se esgotarem os recursos da defesa e a decisão ter transitado em julgado.
Apesar das diferenças entre as duas situações, ambas configuram a impossibilidade da candidatura a cargos políticos. Apesar de Bolsonaro ter declarado que a graça constitucional garantiria a manutenção dos direitos políticos do deputado – e, anulando a condenação, também evitaria a inelegibilidade –, há a possibilidade de que o decreto seja incapaz de garantir a possibilidade de o parlamentar se candidatar.
Conforme explica Dário Júnior, doutor em Direito Processual, há duas súmulas, uma do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e outra do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que divergem entre si quanto aos efeitos do indulto em relação aos direitos políticos. A Súmula 9, do TSE, determina que a “suspensão de direitos políticos decorrente de condenação criminal transitada em julgado cessa com o cumprimento ou a extinção da pena” – e, portanto, prevê que Silveira pode se manter apto à disputa de cargos eletivos. Já a Súmula 631, do STJ, aponta o oposto: “O indulto extingue os efeitos primários da condenação, mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais”. Na prática, de acordo com o tribunal, como a suspensão dos direitos políticos se trata de efeito extrapenal, não está abarcada no alcance do indulto presidencial.
“Há um conflito entre essas duas súmulas. A questão do direito político é que é um direito fundamental, e a tendência é a pessoa indultada recuperar os direitos de votar e de ser votado. Mas, em se tratando de STF, sabemos que a Corte sempre pode adotar um contorcionismo jurídico”, explica.
Para Alberto Rollo, advogado especialista em Direito Eleitoral, são inconstitucionais os aspectos relacionados aos direitos políticos de Daniel Silveira presentes no indulto de Bolsonaro. Conforme explica o jurista, além da Súmula 631, do STJ, pesa o fato de o Supremo ter decidido, em julgamento sobre a Lei da Ficha Limpa, que a inelegibilidade não é configurada como pena ou sanção. “Então se não é um nem outro, não é possível indultar ou perdoar aquilo que não é pena nem sanção. Dessa maneira, entendo que permanece a inelegibilidade”, afirma.
Na avaliação de Douglas Lima Goulart, especialista em Direito Penal e sócio do escritório Lima Goulart e Lagonegro Advocacia Criminal, independentemente do indulto presidencial, os aspectos relacionados aos direitos políticos de Daniel Silveira deverão ser objeto de diálogo entre o STF e o Congresso Nacional, uma vez que se trata de um efeito extrapenal.
“É provável que ocorra esse diálogo entre os poderes, para que haja uma pacificação do tema e que, a partir daí, seja estabelecido à Câmara o poder de votar a inelegibilidade do deputado”, diz Goulart. “Mas estamos em um ambiente nebuloso em que o STF pode, independentemente do posicionamento do Legislativo, entender que foi afrontado [pelo indulto presidencial] e dobrar a aposta, declarando o Daniel Silveira inelegível. Se isso ocorrer, não tem a quem o deputado ou até mesmo o presidente da Câmara recorrer”, afirma.
Perda do mandato
Já com relação à perda do atual mandato de deputado federal de Silveira, Rollo explica que, de acordo com o artigo 55 da Constituição, ela só se dá após o parlamentar sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado. Ou seja, mesmo que não houvesse a concessão do indulto, o deputado permaneceria com o mandato ativo momentaneamente. Ele ressalta, entretanto, que o parágrafo 2º deste artigo determina que “a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta”.
“Então existe um aparente conflito entre o caput e o parágrafo 2º, e no nosso modelo constitucional quem resolve conflitos jurídicos é o STF. É o Supremo que vai ter que dizer se a perda é automática e se o papel da Câmara serve apenas para chancelar a decisão do STF, ou se uma vez que o STF já julgou e condenou, quem decidirá efetivamente sobre a perda do mandato é a Câmara, como diz o parágrafo 2º”, diz o especialista em direito eleitoral.
No mesmo dia em que Silveira foi condenado, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), recorreu ao Supremo para que o Congresso tenha o poder de decidir sobre a cassação de parlamentares condenados pela Corte.
Em ação julgada em 2019 pelo Supremo, ministros validaram “extensão do indulto”
Conforme explica Isabela Bueno, presidente da Associação Nacional de Proteção da Advocacia e Cidadania (Anpac), na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5874, julgada pelo Supremo em 2019, a Corte decidiu pela constitucionalidade do Decreto 9.246, assinado em dezembro de 2017 pelo então presidente da República Michel Temer (MDB), que concedeu indulto natalino e comutação de penas a condenados.
No acórdão da decisão – redigido pelo ministro Alexandre de Moraes –, consta que “Compete ao Presidente da República definir a concessão ou não do indulto, bem como seus requisitos e a extensão desse verdadeiro ato de clemência constitucional, a partir de critérios de conveniência e oportunidade”.
Para a presidente da Anpac, ao discorrer sobre a “extensão” desse ato de clemência, os ministros se referem também às penas acessórias e restritivas de direito. “Portanto, o próprio ministro entende que o perdão de Bolsonaro à pena de suspensão dos direitos políticos de Daniel é legítimo e legal”, afirma.