Experiência
"Peço a Deus saúde e braços fortes"
Odair José Borges da Silva sim, a mãe dele era fã do cantor descarrega 13 toneladas num átimo, coisa de hora e meia. Mulato hiperativo de 31 anos, 1,82 de altura e 105 quilos, Odair prefere o ofício de chapa ao trabalho leve de antes, quando fazia a coleta de encomendas e correspondências numa empresa terceirizada dos Correios. Não gosta de carregar gesso porque suja muito e tranca o nariz. Pior é o cloro para água, pó fino que tem de ser carregado com cuidado porque queima e arde as narinas.
Hoje carrega até cinco fardos de 30 quilos de açúcar no ombro ou na cabeça. Nada menos do que 150 quilos na moleira. Segundo ele, corre em Curitiba a lenda de um chapa que levava até seis fardos na cabeça. A imagem desse Hércules de beira de estrada povoa o imaginário dos chapas, mas ninguém sequer pôs os olhos sobre essa figura lendária.
Pedido
"Hoje não peço outra coisa a Deus além de saúde e braços fortes para poder trabalhar", diz Odair. Nas manhãs frias no ponto do Contorno Sul, onde o ruído do vento soa como uma queixa, ele e outros chapas aproveitaram dois velhos suportes de metal para improvisar um abrigo coberto com lona preta, de modo a não ficar por completo ao relento. Ao lado, uma frase escrita a carvão no poste de luz sintetiza aquilo de que mais precisam os chapas: "Nunca peça para Deus cargas leves, mas sim braços fortes para poder dominá-las."
Saber as ruas faz parte da função
O chapa é um sujeito incompreendido, ainda que necessário. Mais do que braços fortes, precisa ter um bom senso de direção. É ele quem faz as vezes de guia para os caminhoneiros recém-chegados. Tem de conhecer quase todas as ruas da cidade. Não dá para uma carreta de 30 toneladas ficar zanzando nas ruas só porque o chapa não sabe o caminho. "O verdadeiro chapa tem que saber", diz Arnaldo Pedro dos Santos, 54 anos, sete deles como carregador no ponto quase em frente da Ceasa de Curitiba. Por isso caminhoneiro esperto logo pergunta se o chapa sabe a direção.
Não há estimativa de quantos eles são, mas as queixas revelam que o número está aumentado. "Hoje, tudo quanto é desempregado vira chapa", reclama Arnaldo. Nesse meio há costureiro, confeiteiro, vendedor, ex-jogador de futebol, pedreiro. Eles fazem o próprio horário, têm mais liberdade para trabalhar e, em geral, ganham mais do que se estivessem registrados. "Eu tô querendo fichar, mas os caras querem pagar quinhentão", diz Paulo Gilberto Ronviski, 41 anos, chapa há seis. Sem ter concluído o ensino básico, ele não tem profissão, mas já foi ajudante em várias atividades.
Carregar um guarda-roupa nas costas não é tarefa fácil, mas alguém precisa fazê-lo em algum momento. Que dizer então de quem leva nos ombros 280 sacos de esterco de galinha? Mais fedorenta, só uma carga de 30 toneladas de sebo de couro de jegue. No dia em que puxou as 14 toneladas de esterco, Marcos quase não pôde entrar em casa, tamanha ofensa ao olfato da mulher. Fosse casado, Luiz teria idêntico problema depois de descer o sebo vindo do Nordeste para virar cosmético na Cidade Industrial de Curitiba. Como algo tão fedido pode ficar cheiroso? Esclarecer dúvidas não é ofício deles, concentrados em carregar o piano.
Marcos Correia da Silva e Luiz Antonio Lima integram uma legião de trabalhadores informais que ganham a vida no braço às margens das rodovias na entrada das médias e grandes cidades brasileiras. Um julgamento precipitado poderia lançar sobre eles uns quantos olhos de preconceito, o que não raro acontece. Certo dia, no ônibus, Marcos ouviu uma mulher gastar uns dois minutos a lançar suspeitas sobre aqueles homens que lhe pareciam um bando de desajustados à espera de uma vítima. As palavras eram como açoite no lombo. Marcos sentiu a garganta contrair, mas nada falou. O treino diário da labuta fermenta os músculos, mas atrofia a veia da indignação.
Chapa é o nome pelo qual são conhecidos esses homens forjados na força bruta. A madrugada os encontra apressados na rua, a fim de escolher o primeiro lugar na fila. Os pontos se espalham por onde há grande fluxo de caminhões. Quanto mais cedo, mais chance de conseguir trabalho. Pelas 5 da manhã já estão a postos, alguns arrumando os gravetos para o fogo do café. A maioria procura morar perto do ponto para chegar cedo. Um acordo não escrito recomenda respeito à ordem de chegada, nem sempre respeitado. É quando se alteram os ânimos. Não é muito comum, mas tem até briga de faca quando um não respeita a vez do outro.
No caminho do pai
Marcos, ou Baianinho, 39 anos, é o mais antigo no ponto contíguo ao Contorno Sul, no Pinheirinho, em Curitiba. Cedo, botou braços e pernas para trabalhar. Largou a escola aos 14 anos para ingressar nessa rotina depois que o pai, também chapa, caiu doente. Adulto, teve carteira assinada e durante 12 anos foi pastor da Igreja Quadrangular, mas largou o emprego e deixou de pastorear para voltar à antiga lida. "Numa firma eu não ganho o que ganho aqui", explica. Durante dois anos, ele conseguiu conciliar o serviço de chapa de dia e de segurança à noite, mas chegou ao limite do esgotamento físico. A vida sem patrão pareceu-lhe a melhor escolha.
Semialfabetizado, Baianinho fatura R$ 2 mil por mês, em média. O irmão, com ensino médio completo, ganha R$ 700 mensais trabalhando numa empresa. Mas a vida de chapa é instável. Tem dia que dá, tem dia que não. "O segredo é saber administrar o dinheiro", ensina. Segundo ele, é preciso aprender a segurar o dinheiro e não fazer como uns e outros, que gastam no mesmo dia tudo o que ganham. Ele conta que quando trabalhava em firma não podia sair com a família para comer uma pizza. Hoje, sai quase todo fim de semana. É da força dos braços que ele paga o aluguel e tira o sustento dos três filhos. A mulher ajuda como embaladora na Ceasa.
Os chapas se revezam à beira da rodovia acenando para os caminhoneiros. Tem dias em que as horas passam e ninguém para. Mesmo em épocas de escassez de serviço, Marcos se dá ao luxo de escolher a carga que vai pegar. Adotou essa postura depois das 14 toneladas de esterco de galinha, que o deixaram fedendo o dia todo. Noutro ponto, um quilômetro adiante, Luiz faz o mesmo, e não por razão diferente. A fedentina do sebo de couro de jegue saía no suor. É serviço para uma vez só, tanto que o motorista nunca mais parou naquele ponto. Aos 42 anos, 14 deles como chapa, Luiz, que não é bobo nem nada, seleciona as cargas leves e fáceis de manusear.
Qualquer serviço
Para os de opinião contrária, chapa que é chapa não recusa serviço. "O que manda é a verba", diz Áureo Gonçalves Dias, 36 anos, 10 como carregador. Xará de poeta, ele usa mais a massa muscular do que a encefálica. Ele compartilha o ponto com outros colegas no Posto Gasparin, às margens da BR-277, na entrada de Foz do Iguaçu. Entre eles está Agenor Padilha, 41 anos, 12 na lida de chapa. Em caso de precisão, Agenor encara o que vier pela frente, mas, se puder evitar, evita. Agenor não gostou de carregar fibra de lã, em fardos de 15 quilos, no lado paraguaio da Itaipu Binacional. Não é pesado, mas incomoda. Ficou três dias pinicando a pele.
Agenor aprendeu que erva-mate também é uma carga danada de ruim. Depois de uma dessas, ficou verde igual ao Hulk. Não tem jeito, vez ou outra aparece uma carga estranha, ou de difícil manejo. A lista de cargas ruins é imensa, mas tem chapa para todas, e cada um a seu modo. Tem chapa que só carrega móveis e outro que prefere sacaria; alguns só levam a carga no ombro, enquanto outro só leva na cabeça.
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