Vivi foi levada para a casa dos pais adotivos com três anos, em maio de 2015. Na época, a Justiça concluiu que nem o pai nem a mãe biológicos tinham condições de cuidar de uma criança e a menina foi encaminhada para adoção. Vivi agora tem nove anos. E pode ser devolvida à família biológica, no caso para a avó paterna, por ordem emitida em novembro pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).
Os pais adotivos apresentaram recurso, julgado em 25 de fevereiro, e que foi negado. Eles agora pretendem recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Vão também apresentar ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) uma petição online, com 340 mil assinaturas, pedindo que a garota não seja retirada da residência onde passou a maior parte da vida.
O caso alcançou enorme repercussão. E levanta a questão: é seguro, em termos legais, adotar uma criança no Brasil? Afinal, como funciona esse processo, e o quanto ele expõe as famílias e, em especial, as crianças?
Foco na criança
Ao longo de toda a sua extensão, Constituição Federal de 1988 utiliza uma única vez a expressão “prioridade absoluta”. É no artigo 227, que afirma: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
No contexto da Carta Magna, portanto, as crianças estão no centro das atenções da sociedade. Inclusive quando se trata da adoção. A legislação determina que o processo deve ser focado na criança e precisaria ser rápido. “O Estado não procura uma criança para uma família. Procura uma família para uma criança”, informa o advogado Carlos Berlini, presidente da Associação dos Grupos de Apoio a Adoção do Estado de São Paulo (Agaaesp) e presidente da Comissão Especial de Direito à Adoção da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional São Paulo (OAB-SP).
Tudo começa com uma denúncia ou informação de maus tratos, vulnerabilidade. Isso pode vir por uma pessoa física, uma autoridade policial ou um Conselho Tutelar. Diante da denúncia, a criança é colocada em um abrigo ou junto a uma família acolhedora. “Teoricamente, o abrigo deveria ser uma situação provisória e emergencial”, diz Berlini. “O Estatuto da Criança (ECA) pede que o processo não demore mais do que 120 dias, prorrogáveis por mais 120”.
O juiz deve avaliar a situação da criança nesse tempo. Ela pode ser devolvida para os pais, enviada para a chamada família extensa (que consiste em pessoas com as quais a criança já tenha vínculo, incluindo padrinhos, amigos da família e vizinhos), ou então adotada. “A adoção é irrevogável”, afirma o advogado.
Sistema Nacional de Acolhimento
Já a família que quer adotar uma criança precisa entregar documentos à Vara da Infância, que avalia a situação dos candidatos. Podem ser casais, solteiros, divorciados ou casais homoafetivos, desde que o Supremo Tribunal Federal equiparou relações homossexuais a uniões estáveis.
As pessoas que adotam precisam ter mais de 18 anos e ser pelo menos 16 anos mais velhas do que as crianças adotadas. Mas podem determinar o perfil de idade, gênero e raça de preferência, assim como podem optar de que estados gostariam que as candidatas a filhas e filhos sejam originários. “Qualquer pessoa pode solicitar para fazer parte do Sistema Nacional de Acolhimento”, explica Berlini. “Mas avó, avô, bisavó ou bisavô não adotam netos e bisnetos, nem irmãos adotam irmãos. Mas tio adota sobrinho, primo adota primo. Para ascendentes ou descendentes familiares diretos, o que se concede não é adoção, é a guarda”.
Aprovada a entrada no cadastrado, os futuros pais e mães adotivos precisam esperar. Todas as noites, um sistema automático cruza as informações a respeito das crianças disponíveis em abrigos e as famílias que gostariam de adotar. “O juiz da criança entra em contato com o juiz da família. Os dois trocam informações mais detalhadas”, afirma o advogado. “A família então é comunicada e se dispõe a viajar até a comarca onde está a criança. Se houver o vínculo afetivo, a família obtém a guarda para fins de adoção”. O ECA determina que crianças de até 12 anos precisam ser consultadas, e que as menores dessa idade podem, sim, ser ouvidas dentro dos limites em que conseguem se expressar.
Lentidão no processo de adoção gera insegurança
Para a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), não há falhas na legislação. “O problema é que a aplicação da lei valoriza o sistema, e não nas crianças”, afirma. “Os processos parecem mais importantes do que o bem-estar de quem o Estado deveria se propor a acolher”. Além disso, diz ela, “há uma tendência, de fundo ideológico, de valorizar a família biológica, mesmo quando ela claramente não tem a menor condição de cuidar de uma criança”.
O presidente da Agaaesp concorda que “o problema não está na lei. Está na lentidão da aplicação. Não temos Varas da Infância em todas as cidades acima de 100 mil habitantes, como determina o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e os juízes lidam com quantidades enormes de casos”.
Resultado: o processo, que deveria durar no máximo 240 dias, dura em média sete anos. E isso transforma os abrigos, que deveriam ser temporários, no local onde dezenas de milhares de crianças passam toda a infância.
A lentidão cria um abismo entre crianças e possíveis novas famílias: de acordo com dados do CNJ, há hoje 30.713 vivendo em abrigos ou com famílias provisórias, enquanto que existem 34.408 pretendentes à adoção. “Temos mais famílias disponíveis, já avaliadas e aprovadas, do que crianças disponíveis. E mesmo assim o que vemos são casas vazias e abrigos lotados”.
Pensando nessa dificuldade, a deputada Janaina Paschoal, que lançou em agosto passado uma frente parlamentar pela celeridade na adoção de bebês, está trabalhando em um projeto de lei que visa permitir que famílias que se encontram na fila para adoção funcionem como famílias acolhedoras, e tenham prioridade para adotar as crianças ou adolescentes que tenham acolhido. “Não podemos aceitar que tantas famílias continuem esperando, enquanto tantas crianças permanecem em abrigos”.
No caso da garota Vivi, Berlini explica que o juiz de primeira instância não ouviu a avó, em 2014. “A desembargadora tentou corrigir um erro do passado, desconsiderando a situação da criança. Por mais satisfatória que seja, a lei sobre adoção precisa levar em consideração questões afetivas. Devolver a menina a outra família, agora, causaria um trauma”.
Manifestação
Na véspera do julgamento do recurso dos pais adotivos, participantes do movimento “Fica Vivi” realizaram carreatas em torno dos Tribunais de Justiça de São Paulo e de Minas Gerais. “Não queremos que se repitam casos como o da Vivi, ou o Fica Duda”, diz ele, fazendo referência a outra criança, também de Minas Gerais, que se viu cercada por uma disputa judicial envolvendo a família biológica e a adotiva.
A menina Duda foi levada para um abrigo com dois meses de idade. Passou outros 15 meses em abrigo. E então foi levada para os pais adotivos, com quem ficou desde 2011. Mas, em 2014, a falta de celeridade no processo abriu uma brecha para que os pais biológicos alegassem que haviam reestruturado a relação e queriam a menina de volta. Só em 2018 saiu a decisão final a favor dos pais adotivos.
“A insegurança jurídica”, afirma o advogado, “está nessa lentidão com que o processo de adoção é conduzido e na falta das Varas da Infância pelo Brasil”.
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