A Organização das Nações Unidas (ONU) votará na próxima segunda-feira (11) uma resolução sobre família proposta pelo grupo G77 + China, e o Brasil poderá ficar marcado como o principal responsável por uma orientação pró-aborto do documento.
Liderando o bloco latino-americano, o Itamaraty foi o principal articulador pela inserção de um parágrafo com teor abortista no texto. Ao falar sobre questões relacionadas a meninas e mulheres, o trecho usa a expressão "saúde reprodutiva para todas" (veja ao final deste texto, na íntegra, o parágrafo em questão). A expressão "saúde reprodutiva" é uma das mais comuns da linguagem velada que grupos pró-aborto empregam em documentos oficiais para facilitar a aceitação de políticas favoráveis ao aborto.
Em conversas privadas entre diplomatas na ONU, representantes de alguns membros do G77, especialmente de nações em desenvolvimento asiáticas e africanas, expressaram surpresa e decepção com a postura recente do Itamaraty de Lula. Tradicionalmente reconhecido como um modelo de diplomacia avessa a confrontos, o Brasil tem adotado, nas últimas reuniões, uma atitude ideológica polarizadora nas discussões do documento sobre família. O lobby pró-aborto comandado pela missão brasileira tem o apoio de algumas nações do bloco latino-americano, como o México.
Elton Gomes, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), diz que uma iniciativa desse tipo pode sinalizar uma mudança drástica no Itamaraty e "foge das grandes linhas diretivas da diplomacia de Rio Branco, que é uma diplomacia muito pragmática, calcada, sobretudo, em questões de comércio exterior". "Vejo isso como algo atípico para a política externa brasileira, que é pragmática, universalista, multilateralista", diz.
Para ele, "se o Brasil adota esse tipo de posicionamento, abre mão do seu tradicional papel de mediador". A defesa de pautas progressistas, segundo Gomes, é uma postura atípica para um país com aspirações a ser "uma potência intermediária".
Além disso, lembra ele, o G77 + China, coalizão de mais de 130 países em desenvolvimento, é "um agrupamento heterogêneo, composto por países com interesses econômicos, políticos, sociais e geoestratégicos e nível de desenvolvimento tecnológico muito díspares".
"Essa diversidade dificulta a formação de consensos sobre coisas muito elementares – por exemplo, tarifas de importação e exportação. É um grupo que tem uma capacidade de coordenação limitada e com diferenças muito grandes nas prioridades", afirma. "Muitos desses países do G77 têm forte influência religiosa e tendem a se opor a iniciativas de legalização ou de ampliação do procedimento de aborto", acrescenta.
No G77, o consenso entre as nações é tradicionalmente valorizado, e resoluções sobre temas como família costumam ser aprovadas sem divisões internas. Para facilitar isso, evitam-se temas controversos. Caso se confirme, o dissenso em torno da resolução sobre família provocado pelo Itamaraty marcaria uma ruptura inédita no grupo, já que há décadas esses documentos são aprovados com apoio unânime.
Na terça-feira (5), a reportagem da Gazeta do Povo procurou o Ministério das Relações Exteriores para esclarecer a questão. Após a publicação da reportagem nesta sexta-feira (8), o Itamaraty enviou uma resposta afirmando:
O Brasil adota, por mandamento constitucional, o conceito de promoção e acesso universal à saúde, o que engloba todo o espectro de cuidados e tratamento, desde a atenção primária e prevenção, até os cuidados paliativos. A saúde reprodutiva está inserida nesse espectro geral da saúde e trata, dentre muitos temas, de acompanhamento pré-natal, planejamento familiar, parto, redução da mortalidade materna e neonatal, exames ginecológicos de rotina, prevenção de câncer de colo do útero e de mama e, no caso do homem, prevenção do câncer de próstata.
Nesse sentido, não procede a alegação que vincula a expressão "reproductive healthcare for all" à defesa do aborto.
Representante do Itamaraty na ONU milita por aborto e defende "política externa feminista" para o Brasil
Questões como aborto e feminismo são mais comuns em reuniões da ONU que envolvam nações desenvolvidas, onde as ideologias progressistas tendem a encontrar mais adesão. No entanto, nas últimas reuniões sobre o tema da família, isso mudou. E, para espanto de alguns membros, é justamente o Brasil que vem liderando um esforço para inserir a agenda progressista na discussão.
Esse posicionamento da missão do Brasil na ONU tem sido sustentado pela ministra conselheira Viviane Rios Balbino, indicada para a posição pelo governo Lula em julho de 2023. Com um histórico de militância feminista dentro do Ministério das Relações Exteriores, ela tem visões abertamente pró-aborto.
Em setembro, em palestra online intitulada "Uma política externa feminista para o Brasil" para a Universidade de Brasília (UnB), Balbino afirmou que "a discussão sobre a emancipação sexual e reprodutiva das mulheres" é "absolutamente crucial para uma política externa feminista". "Emancipação sexual e reprodutiva das mulheres" é, em última instância, um eufemismo para a defesa da legalização do aborto.
Para evitar a rejeição natural que a menção explícita ao aborto provoca na sociedade, o feminismo radical adota uma linguagem estratégica no debate público e em documentos oficiais com o objetivo de suavizar e normalizar o tema.
Expressões como "emancipação sexual e reprodutiva", "direitos sexuais e reprodutivos", "saúde reprodutiva" ou "direito da mulher sobre o próprio corpo" dizem mais do que aparentam, e são frequentemente usadas para dar respaldo posterior a políticas ou medidas abortistas.
Um documento como uma resolução da ONU que contenha essa expressão não é inofensivo. As resoluções da ONU incentivam os países-membros a adotarem políticas e ações alinhadas aos consensos internacionais. Embora não tenham força de lei, elas representam um compromisso político que impacta as relações internacionais e, internamente, servem para respaldar políticas públicas sob a justificativa de alinhamento com padrões globais. Em última análise, uma resolução da ONU que seja pró-aborto pode, por exemplo, ser usada para fundamentar medidas favoráveis ao aborto dentro do Brasil e dos outros países do G77.
Atual governo é "confessionalmente abortista", diz ex-secretária da Família
A jurista Angela Gandra, que foi secretária da Família do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos durante o governo Bolsonaro, critica a ruptura total do Itamaraty de Lula com o legado pró-vida e pró-família de sua gestão. O atual governo, afirma ela, adota uma abordagem "confessionalmente abortista".
"Qualquer diplomacia deve proteger os valores humanos. A ONU foi formada por causa da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A ideologia não pode se utilizar da diplomacia. Usar o órgão para disseminar as ideologias minoritárias, 'woke', é diferente de defender os valores humanos, como nós defendíamos. Porque nós estávamos defendendo a Declaração Universal e o que formou a ONU efetivamente", comenta.
Angela lamenta a defesa do abortismo feita pelos atuais membros da missão brasileira na ONU em detrimento de pautas como a valorização da família e a defesa da vida. A primeira sinalização disso, lembra ela, foi feita em 2023 com a retirada do Brasil do Consenso de Genebra, um acordo internacional em defesa da vida, da saúde das mulheres e do fortalecimento da família, assinado em 2020.
Ela diz que o MMFDH e o Itamaraty trabalharam, durante o governo Bolsonaro, "para que a mulher não fosse reduzida aos direitos sexuais e reprodutivos". Para Angela, o movimento abortista faz parte de uma lógica do utilitarismo que tem ganhado força em setores da ONU nas últimas décadas.
O que diz o trecho do documento que poderá ser votado no dia 11
16. Convida os Estados Membros a adotarem políticas voltadas para a família em resposta às mudanças demográficas que afetam as famílias, e a aumentarem os investimentos nesse sentido, a fim de garantir acesso a uma educação inclusiva, equitativa e de qualidade, além de cuidados de saúde reprodutiva para todas as pessoas, incluindo em áreas rurais e remotas. Também convida a empreender esforços para eliminar o casamento infantil precoce e forçado por meio de medidas legais, sociais, econômicas e educacionais, e a trabalhar no nível comunitário para mudar normas e atitudes sociais negativas, incluindo campanhas de conscientização pública sobre as consequências negativas dessa prática, além de reduzir a mortalidade materna e promover o empoderamento de mulheres e meninas na formulação de políticas familiares em geral."
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