• Carregando...
Bigarella costumava levar seus alunos de geologia a campo e fazê-los “ler a mão” da terra: “O que vocês estão vendo?”, insistia. | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
Bigarella costumava levar seus alunos de geologia a campo e fazê-los “ler a mão” da terra: “O que vocês estão vendo?”, insistia.| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

Os olhos treinados do professor João José Bigarella viam informação onde qualquer outro veria um deserto. Era assim que ele trabalhava e foi assim que se formou: indo a campo e olhando o terreno. No deserto da Namíbia, nos planaltos paranaenses, nas falésias do Nordeste brasileiro, na Transamazônica, ele observava. Uma nova estrada está sendo aberta no interior do estado? Era uma oportunidade para estudar o corte do terreno e destrinchar sua formação geológica. Daí sua autodefinição: “Sou um quiromante da terra”.

Esta forma de fazer ciência era também sua forma de ensinar. Muito cedo, o professor da UFPR concluiu que não ajudaria seus alunos mantendo-os em sala de aula ouvindo dissertações. Gostava de levar a turma para o campo – o litoral do Paraná era sua sala de aula. Incitava os estudantes: “O que vocês estão vendo?” A pergunta tinha que ser repetida várias vezes e, provocados, os jovens começavam a ver. A ler a mão da terra, como o professor já fazia.

Estrada
do Colono

Entre as mais importantes lutas travadas por João José Bigarella está o fechamento da polêmica Estrada do Colono, que dividia o Parque Nacional do Iguaçu em duas partes. Foram nada menos do que 67 anos de engajamento nessa causa. Entre 1986 e 1988, Bigarella publicou na Gazeta do Povo e em outros jornais as centenas de razões para não permitir nenhuma variante da Estrada do Colono – nem trilha, nem atalho, nem rodovia asfaltada. Dizia, mais do que convencido, que a estrada seria o fim do parque. Bigarella teve também uma atuação firme na preservação da Serra do Mar e das baías de Paranaguá e Antonina.

Uma vez, em uma de suas temporadas em Matinhos, que frequentou desde a infância, ele foi reconhecido por um ex-aluno, já homem maduro, que disse: “aquelas aulas de campo me ajudaram muito”. Toda vez que o professor Bigarella me contou esse episódio, vi lágrimas nos seus olhos.

Havia muito a ser feito por um geólogo brasileiro ao longo do século XX. No Paraná, o subsolo apenas começava a ser estudado. A curiosidade e o empenho de Bigarella o talharam para a tarefa. Ele não se incomodava de pegar um ônibus quando a universidade não tinha transporte para levá-lo para o interior. Junto com Riad Salamuni, fez uma expedição até o Uruguai “perseguindo” o arenito. Foram confundidos com ladrões de gado e detidos pela polícia. Contar a aventura divertia o professor. Dessas expedições, ele trazia fotos que usava para ilustrar as aulas e conferência que deu até o ano passado. Considerava inviável ensinar sem usar imagens.

Um guri alemão

Bigarella foi menino na Curitiba dos anos 20. Aprendeu alemão no Colégio Divina Providência e em casa, com a mãe, que era da família Schaffer. A família do pai era do Vêneto e tinha uma chácara na Travessa da Lapa, esquina com a Visconde de Guarapuava. Quando foi transferido para o Colégio Santa Maria, seu sotaque chamava a atenção dos colegas: falava como um estrangeiro. “Caçoavam de mim “ – me contou, rindo. No Santa Maria teve ótimos professores que lhe abriram a curiosidade para as ciências. “Eles ensinavam ciência, me entusiasmaram por biologia, ciências químicas, física, e isso me orientou na vida. ”

Na UFPR, fez Química, “mas não tinha pesquisa nenhuma”. Mudou para Química Industrial. Entrou para o Instituto de Biologia e Pesquisas Tecnológicas, indicado por um professor e nomeado pelo interventor Manoel Ribas. Mais tarde faria doutorado e ingressaria como professor na UFPR. Andou pela África e pelos Estados Unidos. Aprendia observando outros geólogos trabalhando. Encantou-se pelas dunas, apaixonou-se pelas plantas do deserto, mergulhou nas descobertas da deriva continental. Tornou-se um ecologista quando ecologia era palavra nova.

Na época do primeiro emprego, começou a colaborar com o Museu Paranaense. “A gente seguia para o litoral onde com frequência levávamos pesquisadores de fora. Eu observava como eles trabalhavam. Foi uma espécie de escola, por isso eu gosto muito de museus.“

Os museus se tornaram uma obsessão. Visitou mais de 400 deles mundo afora. Museus como extensão da sala de aula, laboratórios de ciência para a população. Colaborou com alguns projetos no interior do Paraná. Em Vila Velha, depositou toda sua expectativa de ver um espaço dedicado à ciência no estado. Foi sua grande amargura nos últimos meses de vida. Não se conformava com a incapacidade, ou falta de vontade, do poder público de levar adiante uma obra já começada, deixando material se deteriorar e recursos obtidos via Lei Rouanet serem desperdiçados.

A esposa, Iris, é testemunha de quanto essa situação o entristecia. Um mês mais velha que ele (“Por isso eu tenho que obedecê-la”, ele provocava), dona Iris cuidava do marido, que lhe retribuía com aquele olhar apaixonado que era impossível não notar.

O professor Bigarella foi um dos principais defensores da causa ambientalista no Paraná. Ele nos deixa pesquisas nas áreas de geologia e geomorfologia, mas outro legado fundamental para toda a população, certamente, é esse amor, essa paixão que ele tinha pela natureza.

Eduardo Salamuni
professor e chefe do Departamento de Geologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

É uma grande perda para a ciência e, especialmente, para a geologia, da qual foi um dos nomes mais importantes, com reconhecimento internacional à sua vasta obra. Todos nós, paranaenses, estamos de luto.

Beto Richa
 governador do Paraná.

O Paraná e o Brasil devem ao trabalho do professor Bigarella conquistas como o tombamento da Serra do Mar, além da sua reconhecida contribuição para a ciência. É uma grande perda para o país e é importante que seu legado seja preservado e valorizado.

Gustavo Fruet
 prefeito de Curitiba.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]