Dois grandes jornais tradicionais brasileiros, Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo, publicaram editoriais no último final de semana condenando os ataques à liberdade de expressão promovidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ambos já haviam feito críticas eventuais ao aumento da censura por parte de Moraes e do STF ao longo dos últimos anos, mas a contundência dos dois textos recentes é inédita.
Para analistas consultados pela Gazeta do Povo, as revelações do Twitter Files Brasil, as críticas do empresário Elon Musk, dono do X, ao Judiciário brasileiro e a repercussão internacional do conflito Musk x Moraes forçaram um debate mais honesto no Brasil sobre as decisões contra a liberdade de expressão. Perdendo o apoio até mesmo de grandes veículos de comunicação que, em alguns casos, apoiaram suas ações, Moraes se vê acuado pela primeira vez desde que iniciou sua escalada no autoritarismo.
O editorial do sábado (13) da Folha de S.Paulo, intitulado "Censura promovida por Moraes tem de acabar", destaca que o ministro, com suas decisões, "reinstituiu a censura prévia no Brasil".
O jornal critica as "ordens secretas" do ministro que proíbem discursos legítimos nas redes sociais, salientando a falta de transparência e o cerceamento do direito ao contraditório. "O secretismo dessas decisões impede a sociedade de escrutinar a leitura muito particular do texto constitucional que as embasa. Nem sequer aos advogados dos banidos é facultado acesso aos éditos do Grande Censor", afirma o jornal.
O texto também questiona a razão pela qual essas medidas continuam sendo aplicadas mesmo após o fim das eleições. Para a Folha, não há motivo para manter os silenciamentos, que apenas alimentam o "vitimismo hipócrita" dos "bolsonaristas". "É um direito inalienável dos imbecis do bolsonarismo propagar as suas asneiras", afirma o veículo.
O jornal conclui que punições devem ocorrer só quando houver crime, sem o "instrumento inconstitucional e autoritário da censura prévia".
O editorial do Estado de S. Paulo, intitulado "A legítima crítica ao Supremo", defende o direito a questionar e criticar as ações do Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente quando o tribunal excede seus limites constitucionais ou adota práticas percebidas como ativistas ou partidárias. O texto critica certos ministros do STF por interpretarem críticas como "ataques" ou "ameaças à democracia". "Criticar instituições democráticas não é necessariamente atacá-las ou ameaçá-las. Tampouco exigir sua autocontenção é ser extremista, e demandar que atuem conforme a lei não é deslegitimá-las", afirma o jornal.
O Estadão expressa preocupação com as "medidas juridicamente exóticas, quando não inteiramente desprovidas de base legal", que o Supremo tem adotado para combater supostas ameaças à democracia, sugerindo que tais medidas podem, paradoxalmente, minar a legitimidade da própria corte. "Quem tem minado a legitimidade do Supremo é o próprio Supremo, quando atropela sua própria jurisprudência, atua de modo claramente político, colabora para a insegurança jurídica e imiscui-se em questões próprias do Legislativo."
O editorial conclui argumentando que pedir autocontenção e adesão aos limites constitucionais não é antidemocrático, mas sim uma expressão do republicanismo. "Demandar a contenção do Supremo não é ser golpista, é só ser republicano", diz o jornal.
Repercussão internacional obrigou reação da mídia nacional sobre Moraes
O cientista político Paulo Kramer considera que a mudança na percepção da mídia internacional foi decisiva para o que ocorre no Brasil. "Isso está levando à descoberta do que eu considero um 'segredo de polichinelo', que não era nem segredo. Era segredo na medida em que muitas pessoas mal-intencionadas gostariam que permanecesse segredo. Agora, os veículos de comunicação estão tendo que se reposicionar. Porque, agora, o mundo sabe", comenta.
Para ele, "a treta Moraes-Musk energizou a oposição dentro e fora do Congresso". Sobre a possibilidade de impeachment de Moraes, Kramer considera que a chance ainda é remota. "A coisa precisa sair apenas da agenda de parcelas das elites políticas e tomar conta da agenda do debate popular. Aí sim eu acredito que a coisa possa andar nesse sentido, de se abrir um processo de impeachment contra o Moraes", observa.
Na visão de Pedro Franco, mestre em história social da cultura pela PUC-Rio e em estudos interdisciplinares pela Universidade de Nova York, há dois motivos fundamentais para a mudança de posição de alguns jornais tradicionais: a ruptura gradual de uma "espiral do silêncio" sobre Moraes e o fato de que a censura promovida pelo STF só tende a fortalecer a direita.
"Muitos jornalistas estão admitindo abertamente o quanto os abusos do Alexandre de Moraes, quer você os considere abusos ou não, estão alimentando, entre aspas, a narrativa da direita", afirma. "Todo mundo está percebendo isso, que passou a ser contraprodutivo."
O especialista recorda que as próprias redes sociais, internamente, têm consciência dessa dinâmica, como mostra uma entrevista recente do jornalista Michael Shellenberger com o economista Glenn Loury sobre a questão das vacinas da Covid-19 e da tentativa de censura das hipóteses levantadas por certos usuários. "Shellenberger descobriu que os cientistas sociais dentro do Facebook avisaram à administração do Facebook o seguinte: 'A gente pode até tirar de circulação essas matérias, mas a gente não tem como esconder que a gente tirou de circulação essas matérias. E isso pode acabar tendo um efeito pior para o que você está querendo alcançar, que é diminuir a hesitação em relação à vacina. Se as pessoas descobrem que você está censurando coisas, sejam verdadeiras ou não, sobre a vacina, elas vão ficar desconfiadas de que vocês estão tentando esconder algo", exemplifica Franco.
Para ele, a forma de atuação de Moraes é contraprodutiva para o seu próprio objetivo alegado, e mesmo jornalistas que têm repulsa por opiniões da direita têm começado a notar isso. "Quanto mais ele atrai essa atenção para si, para o trabalho que ele está fazendo, mais ele atrai informação para o conteúdo que ele está querendo censurar, seja conteúdo bom ou não. Isso é um componente importante do problema. É a 'contraproducência' estratégica da censura para quem está censurando. Muitas pessoas estão percebendo isso. Jornalistas estão entendendo que isso está alimentando a direita, mais do que atrapalhando", complementa.
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