O convento dos missionários vicentinos no Alto São Francisco guarda um tesouro em vias de ser descoberto. Numa das salas aos quais os padres chamam de "arquivo polônico" repousam, com raras visitas, as 4.423 edições do Lud "povo", em polonês jornal que por 73 anos (1920-1940; 1946- 1999) circulou na comunidade eslava de Curitiba e região.
Era editado em polaco. Tinha anúncios. Assinantes, inclusive em países como os Estados Unidos e Argentina. Estava longe de ser um periódico paroquiano, embora também se dedicasse à piedade. Tratava de agricultura, política internacional, cultura. Mantinha correspondentes. Nos melhores tempos, teria atingido 25 mil leitores quase que a metade do seu público alvo influenciando a rotina das colônias rurais polonesas, como o Pilarzinho, para citar uma.
Detalhe
Pode-se argumentar que o Lud se resume a um entre tantos jornais da época escritos para estrangeiros, a chamada "imprensa de imigração". A diferença é que durou mais, pois foi bancado por uma congregação religiosa, imune às tormentas do livro-caixa. Ainda não há um levantamento confiável, mas entre meados do século 19 e os anos 1930, teriam chegado a circular no Paraná 60 jornais em polonês, três deles com diablik (diabo) no nome, o que sugere algum humor de pasquim. Some-se à lista periódicos alemães, como o Illustriertes Unterhaltensblatt e Deutsche Post, e italianos feito o Il Corriere dItalia.
Rotular o Lud de "mais um" é meia verdade. Tal e qual os demais, o jornal cumpria a tarefa de manter viva a língua materna, informava a comunidade sobre o país de origem e colaborava na formação da nova identidade em terra estranha. Não fosse um detalhe: nas primeiras décadas, o periódico traduzia de alguma forma as tensões internas da comunidade polonesa, às voltas com o movimento que queria fazer do Paraná uma "Nova Polônia", como se dizia. Passada essa fase, sofreu perseguição na era Vargas e ficou seis anos sem circular. Perto de sair de cena, deu voz a Lech Walesa e a João Paulo II. Se o Lud não é documento, nada mais é.
Entraves
Causa surpresa que com todos esses ingredientes, o veículo não tenha sido investigado com afinco. Os vicentinos e estudiosos de cultura polonesa, como o jornalista Ulisses Iarochinski e o tradutor Mariano Kawka culpam esse anonimato à dificuldade de acesso ao jornal. Graças aos religiosos, a coleção não está em frangalhos. Mas o acervo é privado, mantido às próprias expensas. Seria preciso um projeto para digitalizar as 35 mil páginas, boa parte em formato standard, tornando-a pública.
Outra condicionante diz respeito à língua: é uma loteria encontrar um brasileiro que domine o polonês, que tenha formação específica e que ao mesmo tempo esteja disposto aos rigores que o estudo de jornais impõe, editoria por editoria. Esse milagre ainda não aconteceu.
Por enquanto, a tarefa tem ficado a cargo de docentes de instituições da Polônia, que vez ou outra pingam nos lambrequins curitibanos. Krzysztof Smolana, da Universidade de Varsóvia, organizou toda a correspondência do Lud, dividindo-a numa dezena de pastas. Kazimierz Waschalowski fez visita de estudos em 2012. Este ano, é a vez de Jerzy Mazurek, autoridade em jornais editados por imigrantes poloneses nos quatro cantos do mundo.
Exército
A presença desses visitantes confirma o interesse que o Lud desperta fora daqui. Resta a contrapartida. Motivos não faltam. "É uma questão de tempo", aposta o tradutor Mariano Kawka. Ulisses Iarochinski que fez estudos avançados na Universidade Jagiellonski, em Cracóvia vai mais longe: entende a imprensa de imigração como parte de um movimento internacional em prol do letramento dos poloneses dispersos. É uma tese explosiva.
"Todas as colônias tinham um padre e uma escola, muitas em horário integral. O conteúdo era repetido em polaco e em português. Era uma gente que foi parar no Santa Cândida com a roupa do corpo. Os intelectuais poloneses, na Europa, se preocupavam com a situação de seus patrícios. Havia um interesse em informá-los e ganhá-los para a questão da Polônia", explica, sobre o país que ficou ocupado de 1795 a 1918.
A fala de Ulisses confirma a estranheza que o Lud provoca. O impresso prova que os imigrantes não tinham instrução tão baixa, como se propala: publicava artigos elaborados ao lado de dicas de plantio; não estava desvinculado dos dilemas da atribulada Polônia; reproduzia as contradições da própria comunidade, dividida entre seguir o clero ou apoiar o Junak, uma espécie de exército secreto de imigrantes em terras brasileiras.
O jornal era apaziguador. Nasceu, inclusive, da compra das oficinas do Polak w Brazylii, periódico de cunho anticlerical, ligado aos imigrantes que sonhavam um território polonês na América do Sul. De preferência na região de Curitiba. Controvérsias não faltam. "Onde tem dois polacos tem três partidos políticos", brinca Iarochinski, no repeteco da velha piada de salão, boa o bastante para desmontar os retratos ingênuos sobre os tempos da colônia.