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"Jurados de morte" ou "presos seguros", no jargão das penitenciárias, são aqueles detentos que ficam isolados dos colegas de xadrez. É a lei da selva: não merecem perdão os condenados por crime de estupro, nem delatores e ex-policiais. Questões paralelas – como disputas de poder e pendengas trazidas da vida lá fora – também podem contribuir para eleger um "jurado". E eles não são poucos: estima-se que 10% dos 8,3 mil detentos do Paraná se enquadrem nesse perfil.

Para o sistema prisional, proteger essa população é uma questão de bom senso. Há casos de "presos dos próprios presos" que foram envenenados. E nos motins – cada vez mais comuns num país onde o sistema penitenciário ganha 1,5 mil novos inquilinos a cada mês –, o detento segregado é alvo preferencial de chacinas.

Algumas iniciativas têm contribuído para melhorar a vida desses presos. Há um ano e meio, quando o pastor potiguar Gustavo Brandão, 45 anos, da Igreja Presbiteriana Independente, no bairro do Bacacheri, em Curitiba, resolveu oferecer uma oficina na Prisão Provisória de Curitiba (PPC), no Ahú, Deus acabou escrevendo certo por linhas tortas. Brandão se viu frente a frente justo com a clientela que fica 24 horas por dia na linha de tiro. No Ahú, são cerca de 90 jurados de morte (10% dos 925 internos da unidade). Dos 12 participantes da primeira oficina de Gustavo, cinco pertenciam a essa tribo. No grupo, lembra o pastor, não era difícil identificá-los. Deprimidos, acuados, alguns tinham "um olhar perdido", como diz, e ficavam passos atrás dos companheiros. "Eles correm risco de vida. Estão sob pressão todos os dias", destaca.

Curiosamente, a atividade desenvolvida pelo pastor era a construção de um aquário, um projeto cheio de segundas intenções. Funcionava tanto como lazer, a "laborterapia", quanto como programa profissionalizante. Ex-acadêmico de Oceanografia, carreira que queria seguir antes de abraçar a vida religiosa, Brandão entendeu que poderia fazer um projeto "dois em um", com a vantagem do baixo custo. Foram quatro aquários e R$ 600, apenas. Ao mesmo tempo, repassaria aos presos noções de filtragem de água, alimentação de peixes e construção do reservatório e, capacitando-os para o ofício, poderia discutir os paralelos entre a situação do preso e a de um aquário. O objetivo é o que, pastoralmente, se chama "metanóia" – uma mudança de atitudes. E para felicidade de Brandão, a despretensiosa "aquarioterapia" serviu para tirar do casulo alguns dos oficineiros "marcados para morrer".

Cerca de seis meses depois, outro voluntário da Prisão Provisória, o empresário Marcos Antônio Ramón, 37 anos, ligado à Federação Espírita do Paraná e oriundo de um trabalho pastoral no Ahú, teve experiência semelhante. No lugar dos peixinhos entraram os pãezinhos. Ramón percebeu que a panificadora do PPC estava desativada desde que o governo do estado terceirizou o serviço de padaria. Mesmo sem nunca ter posto a mão na massa, ofereceu uma oficina. Começou pequena. Investiu R$ 50 mil, ganhou uma concorrência. Hoje, abastece o sistema penitenciário da região, produzindo 13 mil pães por dia. Segundo consta, a segunda maior produção municipal, perdendo apenas para uma grande rede de supermercados de Curitiba.

Ramón se recorda de dois casos de inclusão de "jurados de morte". Um era ex-policial; outro, ligado a um crime sexual. Para vencer as animosidades, usou de uma medida simples. Na porta da padaria avisava para cada um dos 15 presos aprovados para o projeto. "Dessa porta para dentro você não é preso. Aqui somos todos trabalhadores". A satisfação veio tempos depois quando os proscritos da panificação passaram a ser aceitos nos jogos de futebol.

Olhos abertos

Os técnicos e dirigentes do Departamento Penitenciário cercam de cautela a situação dos "jurados". A palavra de ordem é não segregar e não reforçar divisões internas criadas pelos detentos. Por isso, nas 17 unidades do estado não existem celas separadas para os "seguros" e a orientação dos agentes é "pregar os olhos". Todo cuidado é pouco. Principalmente quando alguém visado vai para um canteiro de trabalho aberto, ficando mais suscetível à fúria de seus desafetos. "As condições de segurança são estudadas em qualquer situação", reforça o major Raul Vidal, diretor da PPC.

Em meio a essa tensão constante, as atividades terapêuticas e profissionalizantes (leia nesta página) são recebidas com fogos. Um total de 59,94% da população carcerária freqüenta algum dos 209 canteiros de trabalho do sistema. Infelizmente, não há estatísticas para avaliar em que medida o trabalho e a laborterapia ajudam a dissolver rusgas internas.

"Para os agentes é feijão com arroz lidar com os conflitos. Eles fazem isso todo dia. Não se trata de uma questão numérica. Rebelião é regime de exceção", explica o coronel João Krainski Neto, coordenador assistente do Departamento Penitenciário do Paraná. Ele vai mais longe. No regime atual, meter-se numa briga ou arquitetar vingança é um mau negócio: a punição costuma ser perder a redução de pena conseguida com a participação nos projetos profissionalizantes oferecidos – com ganhos que vão de 1/3 a 75% do salário mínimo. São as regras do aquário.

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