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Com a proximidade do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que poderá desfigurar a proteção dada à liberdade de expressão pelo Marco Civil da Internet, diversos juristas foram mobilizados para defender, junto aos ministros, a constitucionalidade da lei e argumentar que eventuais mudanças nas regras deveriam partir do Legislativo, não de interpretação da Corte.
Está marcado para a próxima quarta-feira (27) o início do julgamento de duas ações que questionam a validade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, segundo o qual as redes sociais só podem ser responsabilizadas por conteúdo ofensivo ou danoso postado por usuários caso descumpram uma ordem judicial de remoção. A regra foi fruto de amplo debate na época da edição da lei, em 2014, e tem por objetivo impedir a censura nas plataformas.
Esse trecho do Marco Civil da Internet impede que qualquer pessoa que se sinta ofendida por alguma postagem pressione a rede social a retirá-la do ar a partir de uma notificação direta à plataforma. Caberia ao Judiciário aferir a ilicitude do conteúdo e determinar a retirada. Se bastasse uma notificação direta da parte afetada, haveria um incentivo para que as empresas de tecnologia removessem qualquer crítica legítima e lícita para evitar processos e pagamentos indenizatórios.
Há duas exceções previstas na própria lei: em caso de violação da intimidade, com postagens de nudez ou sexo sem autorização da pessoa envolvida; e quando algum conteúdo viola direitos autorais. Nesses casos, a rede é obrigada a apagar o material assim que avisada.
Mudanças devem ser discutidas no Congresso, alertam juristas
Os ministros discutirão agora se abrem, via judicial, mais exceções à regra geral. Cogita-se incluir a obrigação de remoção imediata de pornografia e exploração sexual infantil, incitação ao terrorismo, discriminação e racismo, e incentivo a crimes contra a democracia.
A preocupação de vários juristas é sobre em que termos isso será estabelecido pelo STF, especialmente se os ministros decidirem que há também a obrigação de remover conteúdos de categorias abertas e subjetivas, como discurso de ódio e desinformação. O risco é de que, para evitar processos e punições, as plataformas removam toda e qualquer postagem que possa assim tachada, ainda que sem razão e de forma indevida.
Em manifestações enviadas ao STF, eles defenderam que as exceções sejam adicionadas no próprio Marco Civil da Internet, a exemplo dos casos de violação da intimidade e dos direitos autorais, mediante lei aprovada no Congresso, e não por interpretação da Corte. Advogados do Senado foram alguns dos que defenderam tal solução.
“É certo que a circulação de ideias, notadamente nas plataformas digitais, pode ter a sua regulação aprimorada, notadamente para coibir o exercício abusivo da liberdade de expressão, mas é importante que esse debate ocorra no espaço plural e representativo do Parlamento, a fim de que os diferentes caminhos constitucionalmente possíveis sejam ponderados para a solução adequada da matéria”, diz a manifestação do Senado, assinada pelas advogadas Luiza Deretti Martins, Ana Cristina Diógenes Rêgo Cordeiro e Gabrielle Tatith Pereira.
Entidades que representam o setor de tecnologia também se manifestaram junto ao STF, não apenas em favor da constitucionalidade do Marco Civil da Internet. Argumentaram também que a regra foi objeto de amplo e aprofundado debate com a sociedade e chegou a uma solução adequada. A lei prevê, por exemplo, que conteúdos ofensivos podem ser removidos de forma célere, a partir de um pedido a um juizado especial. Além disso, não impede que, por iniciativa própria, as plataformas removam publicações que contrariem seus termos de uso, o que já abrange a maior parte dos conteúdos inequivocamente ilícitos e danosos.
A Câmara Brasileira da Economia Digital, que representa vários setores da economia digital, lembrou que o Marco Civil da Internet começou a ser elaborado em 2009 pelo governo e pela Fundação Getúlio Vargas. Durante sua tramitação no Congresso, recebeu milhares de sugestões de aprimoramento, sendo que parte referente à responsabilização das plataformas digitais foi a mais debatida. Argumentou que o combate a informações falsas e conteúdos ofensivos deve estar amparado na lei, mas não prescinde de outros meios.
“A disseminação de informações falsas e conteúdos ofensivos é, sem dúvida, um desafio relevante e contemporâneo, mas trata-se de uma questão intrinsecamente complexa e multifacetada. A solução exige um conjunto coordenado de medidas legislativas, educacionais, tecnológicas e institucionais, não se limitando ao regime de responsabilidade previsto no Marco Civil da Internet ou a uma decisão judicial isolada”, diz a entidade. A manifestação é assinada pelos advogados Igor Luna, Luísa Sottili e Rafaela Braga.
Câmara engavetou proposta que abria margem para censura
Os ministros do STF defendem o julgamento do Marco Civil da Internet há alguns anos. A Corte vem adiando essa decisão porque esperava que uma nova regulamentação viesse do Congresso. No ano passado, a proposta mais abrangente sobre o assunto, o Projeto de Lei 2630/2020, chegou a ser pautado na Câmara, mas foi retirado de votação pelo alto risco de rejeição – as empresas de tecnologia alertaram que ele também favorecia a censura privada.
O texto estabelecia o “dever de cuidado” das plataformas em relação a conteúdos nocivos. Seriam obrigadas, com isso, a prestar contas de todas as medidas que adotam para coibir manifestações ilícitas, bem como ampliar a transparência sobre seus sistemas de recomendação e direcionamento de conteúdo. Relatórios deveriam ser submetidos a um órgão regulador estatal, que fiscalizaria a moderação dos conteúdos e poderia aplicar sanções. Trata-se de um modelo mais complexo, inspirado na legislação mais recente da União Europeia.
Lei não pode ser derrubada porque ministros a consideram ruim, dizem advogados
Juristas que defendem o Marco Civil da Internet dizem que a lei brasileira é mais adequada por delegar ao Judiciário a análise de conteúdos em que haja controvérsia sobre sua licitude, em vez de deixar essa tarefa para as próprias plataformas ou a particulares. Caso se decida pela abertura de novas exceções à regra da decisão judicial, seria o caso de acrescentá-las à lei, para conteúdos de ilicitude inequívoca e de fácil aferição, como é o caso de pornografia infantil.
“Aumentar o rol de exceções de conteúdos cuja ilegalidade é objetiva – e que, portanto, devem ser removidos sem necessidade de ordem judicial – é algo que pode ser pensado e discutido com cuidado, desde que sejam conjuntamente criados critérios claros – e o melhor lugar para isso é o Congresso Nacional”, afirmou ao STF o Instituto dos Advogados de São Paulo, em peça assinada por seu presidente, Renato de Mello Jorge Silveira, e pelo diretor Thiago Rodovalho.
A pedido de empresas de tecnologia, juristas e professores de renome também defenderam junto ao STF a constitucionalidade do Marco Civil da Internet. Argumentaram que uma lei não pode ser derrubada pela Corte somente porque ministros a consideram ruim. Nesse caso, cabe aprimoramento legislativo, mas não declaração de inconstitucionalidade.
“O controle de constitucionalidade não pode servir de via oblíqua à reforma legislativa, de tal maneira que as opções do legislador não podem ser revogadas caso não violem o texto constitucional. A discussão e deliberação a respeito da ‘melhor solução’ para regular determinada matéria deve se dar, exclusivamente, no âmbito do processo legislativo", escreveu, em parecer, o professor da Unisinos Lênio Streck, contratado pelo Google no caso.
De forma semelhante, o advogado e ministro aposentado do STF Francisco Rezek defendeu a constitucionalidade do Marco Civil da Internet.
“O Brasil tem hoje uma das mais modernas e completas legislações regulatórias do direito digital, inspirada em exemplos seguros e sensatos do hemisfério norte. O Marco Civil da Internet assegura ao usuário direitos e garantias suficientes e adequados, em total consonância com os preceitos da Carta. A suposta inconstitucionalidade do artigo 19 do MCI é uma ficção”, afirmou em parecer contratado pelo Facebook.
O julgamento no STF começará na quarta-feira (27), a partir das 14h. Antes dos ministros votarem, poderão se manifestar no plenário as partes – advogados de Facebook, Google, e pessoas afetadas por publicações ofensivas – além da Advocacia-Geral da União (AGU), Procuradoria-Geral da República (PGR) e entidades interessadas. Os ministros relatores são Dias Toffoli e Luiz Fux, que votam primeiro.