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Infância ameaçada

Justiça sem dano para as crianças

Relato é muito doloroso para a criança, que em muitos casos prefere não levar a denúncia adiante quando tem de repeti-lo várias vezes. Ideal seria um único depoimento, gravado por um profissional | Divulgação Pequeno Príncipe
Relato é muito doloroso para a criança, que em muitos casos prefere não levar a denúncia adiante quando tem de repeti-lo várias vezes. Ideal seria um único depoimento, gravado por um profissional (Foto: Divulgação Pequeno Príncipe)

O Brasil ainda não tem um sistema para ouvir com dignidade crianças e adolescentes vítimas de crimes sexuais. Elas precisam contar o ocorrido para oito autoridades diferentes, em média, como conselheiros tutelares, policiais e juízes. Isso ocasiona um processo chamado revitimização, como se a criança revivesse o drama a cada nova declaração. O chamado depoimento sem dano é realidade somente em 20 comarcas no país. Nesta semana, a questão será tema de um encontro organizado pelo Conselho Nacional de Justiça em lembrança do dia 18 de maio, data de combate ao abuso e à exploração sexual de meninos e meninas.

O ideal nesses casos seria que a criança fosse ouvida o menor número de vezes possível. Com a articulação entre as diversas instâncias envolvidas, os meninos e meninas poderiam dar apenas um depoimento a um profissional qualificado, como um psicólogo, e a declaração seria gravada. Mas hoje o país não tem estrutura para isso. O problema começa na falta de capacitação dos conselheiros tutelares, inexistência de delegacias especializadas e falta de varas designadas apenas para a área de infância e juventude.

Para especialistas, é importante que o poder público debata o problema antes de ele chegar ao Judiciário. Hoje, a maior parte dos casos de denúncia de abuso chega primeiro aos conselhos tutelares, que encaminham a criança para médicos, peritos do Instituto Médico Legal e policiais. Depois, a vítima ainda precisa contar o drama para promotores e juízes.

É importante articular a rede de proteção porque, como o relato é muito doloroso para as vítimas, muitas preferem não levar a denúncia adiante, o que acaba gerando a impunidade dos agressores. Em países como Inglaterra e Argentina esta estrutura do depoimento sem dano já está mais fortalecida e existe amparo legal. No Brasil não há legislação sobre o assunto e alguns juízes não aceitam depoimentos gravados.

O advogado Renato Roseno, ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), explica que os meninos e meninas precisam de um atendimento diferenciado porque hoje recebem a mesma atenção dada a um adulto vítima de um furto. "É preciso debater todo o sistema e respeitar a criança integralmente. Hoje as instituições são fragmentadas." Outro ponto importante é que não há nenhuma política pública nacional para tratamento dos agressores, que continuam a repetir os crimes se não tiverem suporte psicológico.

Secretária executiva do Comitê Nacional de Enfren­tamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, Karina Figueiredo afirma que o país avançou nos últimos anos neste assunto – que está na pauta da sociedade –, mas lembra que ainda ocorrem graves violações de direitos humanos. No caso, por exemplo, das adolescentes vítimas de exploração sexual comercial, além de todo o martírio de repetir o ocorrido há ainda o preconceito, inclusive de membros do Judiciário.

Vice-presidente da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ariel de Castro Alves lembra que ano passado o CNJ já recomendou que todas as varas de infância do país criassem estruturas para o depoimento sem dano. Para ele, é muito difícil quebrar o silêncio do abuso sexual porque na maior parte dos casos o agressor tem algum tipo de vínculo com a vítima. "Todo este processo hoje é constrangedor e humilhante."

Para o promotor de Justiça Murillo José Digiácomo, do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Criança e Adolescente do Ministério Público Estadual, há ainda a possibilidade uma terceira via. A criança seria acompanhada por uma equipe multidisciplinar desde o início das suspeitas e os profissionais elaborariam uma perícia para o Judiciário, sem a necessidade de um depoimento. Ele argumenta que hoje a legislação não prevê a obrigatoriedade de escuta e que há outros meios de se coletar provas.

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