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A condução da segurança pública na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sob o comando do ministro Flávio Dino (PSB), tem patinado neste início da nova administração federal. Com poucas proposições apresentadas tanto no programa parcial de governo como durante a campanha eleitoral, o cenário que se iniciou no novo mandato de Lula é de muitos discursos ideológicos e poucas definições claras sobre o tema.
Uma das esperanças para o surgimento de medidas concretas de enfrentamento ao crime estava no relançamento do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). O programa foi lançado na quarta-feira (15) - ainda em tom de campanha eleitoral -, com acenos diversos à base de apoio de Lula, críticas a adversários políticos e às forças policiais e, principalmente, sem medidas de enfrentamento ao crime organizado. O anúncio preocupa especialistas em segurança pública, que apontam falta de pragmatismo na gestão do tema pelo governo petista.
Com a crescente preocupação sobre a condução da segurança no âmbito federal, a Gazeta do Povo avaliou a maneira como dois estados brasileiros que eram governados por ministros de Lula, Bahia e Maranhão, foram geridos nos últimos anos para entender o que é possível esperar daqui para a frente quanto ao combate à criminalidade.
Ambos os estados foram governados nos anos recentes com uma visão bastante próxima daquilo que Lula tem anunciado que pretende seguir – enquanto o Maranhão esteve os últimos oito anos sob o comando do próprio ministro Flávio Dino, a Bahia é governada desde 2007 por membros do Partido dos Trabalhadores (PT); Rui Costa, atual ministro da Casa Civil, esteve à frente do Executivo estadual entre 2015 e 2022.
Ao analisar os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o que chama a atenção é que ao se retirarem dos cargos no ano passado, os ex-governadores deixaram índices dramáticos relacionados a homicídio, tráfico de drogas e outros crimes, como roubo de carros e assaltos a estabelecimentos comerciais e pessoas nas ruas. E o pior: o registro de aumento da violências nos estados ocorre enquanto a média do país teve melhoras significativas em alguns desses indicadores, como é o caso dos homicídios.
O crime de roubo de veículos por exemplo, aumentou 90% no Maranhão no último ano de gestão de Dino, enquanto a média do país foi redução de 4% nesse delito. Já a Bahia registra os maiores números de homicídios desde o início série histórica apurada pelo FBSP, em 2011, quando o estado já era governado pelo PT há quatro anos. Enquanto o país passou a atravessar uma queda significativa de mortes violentas a partir de 2018, o estado baiano manteve os mesmos patamares de violência.
A despesa per capita com segurança pública nos dois estados também está entre as piores do país, segundo a última edição do Anuário. Os governos petistas reduziram progressivamente os gastos nessa área nos últimos anos – para se ter uma ideia, somente o Piauí registrou despesa per capita com segurança menor do que Bahia e Maranhão ao longo dos últimos quatro anos.
Como herança, Rui Costa deixou a Bahia na liderança de incidência de diversos crimes
A eleição de Jerônimo Rodrigues para o governo baiano no ano passado representa a consolidação da hegemonia petista no estado – o quarto estado mais populoso do país segundo o IBGE, com 14,9 milhões de habitantes. O mandato que se iniciou neste ano é o quinto consecutivo sob gestão do partido. Entre 2007 e 2014, a Bahia foi governada por Jaques Wagner, que foi ministro de Lula e hoje é líder do governo no Senado, e de 2015 a 2022 por Rui Costa, atual ministro da Casa Civil.
O que mais salta aos olhos ao analisar números sobre a criminalidade durante a gestão do PT é que desde 2011, quando o FBSP passou a monitorar anualmente os indicadores de segurança pública no Brasil, o estado lidera o ranking de homicídios entre todas as unidades da federação do país. O ápice foi o ano de 2016, quando foram registradas 7,1 mil mortes violentas na Bahia, enquanto a média do país – em muito puxada pela Bahia – foi de 2,3 mil homicídios. O único estado que em alguns anos chegou perto dos números baianos foi o Rio de Janeiro, que vive um cenário ímpar de guerra urbana devido ao domínio de facções criminosas ligadas ao narcotráfico nos morros fluminenses.
Em 2021, enquanto o Brasil alcançou o menor número de mortes violentas desde 2011, com 6,5% de queda, apenas quatro estados registraram aumento de homicídios, dentre eles a Bahia. Ainda naquele ano, o estado aumentou drasticamente seus números em vários crimes, figurando nos primeiros lugares no ranking de latrocínio (roubo seguido de morte), roubo de veículos, assalto a estabelecimento comercial, residências e bancos, roubo a pessoas nas ruas e tráfico de drogas.
Na maioria desses delitos, a Bahia foi na contramão do restante do país, que apresentou redução dos crimes. Já nos casos de crimes que também registraram aumento no restante do Brasil, a Bahia obteve acréscimos muito mais expressivos, chegando a quase dez vezes mais em alguns casos. A título de comparação, enquanto a média do país para o crime de roubo a estabelecimentos comerciais foi 6,5% de aumento, a Bahia registrou aumento de 63,6%, ocupando a liderança disparada nesse delito.
Como exemplos dos poucos crimes que o estado tem conseguido reduzir estão roubo e furto de celulares – ambos registraram queda entre 2018 e 2021. Já o cenário para os profissionais de segurança pública do estado não é favorável. A Bahia somou o terceiro maior número de policiais mortos em 2021, ficando atrás apenas do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Para especialistas, governos petistas deixaram a segurança em segundo plano na Bahia
Sérgio Habib, que foi secretário de segurança pública da Bahia na década de 90 e é professor de Direito Penal, aponta que os principais problemas da criminalidade no estado estão ligados aos crimes decorrentes do narcotráfico, como homicídios e roubos. “A Bahia é quase que campeã nacional hoje nesses índices de tráfico e crimes envolvendo o tráfico. O estado lidera no número de homicídios, principalmente nas periferias, mas isso tem crescido muito também nos bairros nobres”, declara.
Para ele, as gestões petistas que se prolongaram no poder não enxergaram a segurança como uma prioridade. “Houve muito investimento em construção e pavimentação de estradas, por exemplo, mas acho que o governo do PT não deu a importância devida à segurança pública, e a população ficou carente disso”, afirma Habid. “O cidadão não pode sair nas ruas à noite, não pode usar os parques públicos. Durante o dia também tem muitos perigos, como a saidinha bancária e outras coisas do tipo. Isso é um problema de gestão. A segurança pública é o ‘calcanhar de Aquiles’ do governo da Bahia”, diz Habib.
Para Henrique Quintanilha, advogado criminalista baiano e ex-docente da UFBA, os governadores petistas não foram capazes de frear o avanço de facções criminosas, as quais nos últimos anos têm se expandido para as regiões Nordeste e Norte do país. “Enxergando uma postura mais permissiva com o tráfico de drogas, organizações criminosas de alta complexidade passaram a ver a capital, Salvador, como uma alternativa viável aos polos tradicionais do Rio de Janeiro e São Paulo, formando um novo polo da alta criminalidade, o que inexistia há duas décadas”, diz o criminalista. “O tráfico chegou aqui e não encontrou resistência”, salienta.
Além da estrutura precária para a atuação das polícias militar e civil – que tem impacto ainda maior no interior do estado –, Quintanilha lamenta episódios como a declaração de Ricardo Mandarino, secretário da Segurança Pública da Bahia na gestão de Rui Costa, dada no ano passado sobre a descriminalização do uso da maconha.
Em vídeo que viralizou, Mandarino afirmou que a droga “emanciparia” pessoas e “aumentaria a criatividade”, ignorando pesquisas sobre efeitos colaterais e aumento de criminalidade. “[As drogas] tiram você das amarras mentais, elas tornam você um emancipado mental, que é o que a gente precisa ser. A gente não pode ficar nessas caixinhas”, disse Mandarino na ocasião.
“Quando os traficantes, que são quem movimenta essa criminalidade maior, ouvem isso de um secretário de segurança pública, é claro que passa uma mensagem de incentivo ao crime”, afirma Quintanilha.
Suposta tolerância a invasões do MST na Bahia
Lar de diversos líderes nacionais do movimento, a Bahia é um dos locais mais importantes para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Palco de frequentes invasões de terras até 2018, o estado registrou redução expressiva desses atos nos últimos quatro anos sob a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). No entanto, a nova política do Incra - de conceder títulos de terra definitivos aos produtores rurais e enfraquecer o poder de militantes do MST sobre os produtores - gerou uma série de conflitos, especialmente na região sul do estado, com o registro de agressões e vandalismos diversos executados por militantes do movimento.
Na série de reportagens que a Gazeta do Povo fez sobre os crimes (matérias 1, 2 e 3), vários produtores rurais que haviam rompido com o movimento disseram ao jornal que havia seguidas negativas por parte da Polícia Militar para atender aos chamados. Segundo as fontes, policiais teriam mencionado informalmente aos produtores a existência de ordem vinda do governo estadual ao Comando da PM, para que policiais militares não entrassem em áreas de assentamento do MST. Na época, a reportagem questionou a Polícia Militar baiana e o gabinete do governador sobre as denúncias – ambos não retornaram aos pedidos de informação.
Desde o início do novo governo, invasões de terra voltaram a ocorrer, sem que Lula ou demais membros do alto escalão do governo condenem os atos ou tomem providências concretas para inibi-los. “Eu acredito que houve leniência de governos anteriores, na Bahia, quanto a essas invasões. Infelizmente o partido aceita e incentiva esses atos. Ocorreram invasões, e quando a polícia era acionada havia uma certa dificuldade para os proprietários de terras de obterem presteza da polícia para desocupar as terras”, diz Habib.
“Num momento em que há desinteresse do governo em fazer o cumprimento dessas ordens, isso se torna difícil. Então acho que a culpa não é da autoridade militar, nem civil. Atribuo isso ao próprio governo. Não acho que tenha havido uma ordem de não fazer, mas sim uma leniência, uma ‘vista-grossa’”, complementa.
Sob gestão de Flávio Dino, Maranhão teve pico de homicídios
Flávio Dino esteve à frente do governo maranhense por dois mandatos, e o atual governador do estado é seu sucessor. Durante sua gestão, o atual ministro da Justiça e Segurança Pública de Lula não conseguiu reduzir índices de criminalidade no estado. O ano de 2016, o segundo sob seu comando, foi marcado pelo mais alto número de mortes violentas no Maranhão em toda a série histórica apurada pelo FBSP, com mais de 2,3 mil homicídios.
A partir de 2018, quando vários estados passaram a registrar redução no número de mortes violentas, o Maranhão registrou uma pequena diminuição nos índices em 2018 e 2019, mas voltou ao patamar anterior a partir de 2020.
Ao anunciar sua saída do governo para ser pré-candidato ao Senado Federal, no ano passado, Dino deixava o estado em um cenário bastante crítico, segundo o Anuário de Segurança Pública 2022. No ano anterior à sua saída, o estado teve, disparadamente, o maior aumento proporcional de roubo de veículos do país – o acréscimo foi de 90,4%. A título de comparação, o segundo maior aumento proporcional ocorreu no Acre, e foi de 25%.
O Maranhão também ocupou, em 2021, um dos primeiros lugares no ranking de estados com o maior aumento de crimes de latrocínio, atrás apenas de Bahia, Amazonas, Amapá e Rondônia. O estado teve ainda o maior aumento proporcional de roubo de pessoas nas ruas, com acréscimo 21,4%, enquanto o país registrou redução média de 7,5%. O Maranhão também figurou muito mal em crimes como roubo a estabelecimentos comerciais, roubo de celulares e tráfico de drogas.
Com relação às forças de segurança, o número de policiais assassinados em serviço se manteve o mesmo no último ano. Destaca-se, entretanto, o número de policiais que tiraram a própria vida. O Maranhão lidera os casos de suicídio de agentes de segurança segundo a última edição do Anuário, com aumento de 210%, frente à média de 59,7% no restante do país.