Dono de autopeças, Valdir Chagas reclama que o setor sofre discriminação após o caso de corrupção: “Ficou ruim para gente”| Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo

Paraná

Norma estadual aprovada há oito anos "não pegou"

Desde 2005, o Paraná tem uma lei estadual (nº 268/05) que disciplina o comércio de peças usadas. A norma proíbe que autopeças e ferros-velhos mantenham os componentes usados em prateleiras. Os veículos batidos devem permanecer nos pátios das lojas "da maneira que foram adquiridos" (em leilões ou diretamente de terceiros) e as peças a serem comercializadas devem ser retiradas no ato da venda. Em caso de descumprimento, a lei prevê a cassação do alvará do estabelecimento.

Apesar disso, a lei "não pegou". A Polícia Civil entende que, por não prever crime, a norma deveria ser fiscalizada pela prefeitura e pela Receita Estadual. Esta, por sua vez, alega que não tem competência para vistoriar os itens contemplados nesta legislação. O delegado da PF e especialista em segurança, Algacir Mikalovski, revela que o governador teria de editar um decreto, estabelecendo quem deve aplicar e fiscalizar a lei.

"Há um conflito negativo de interesse, que deve ser dirimido pelo governador. O hiato do não cumprimento desta norma se deve a isso", observa. Apesar disso, ele diz que a norma não é suficiente para garantir um cerco efetivo ao comércio de peças roubadas.

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Polícia defende identificação em peças

Para policiais, fiscais e especialistas, as brechas decorrem principalmente da falta de uma política nacional que normatize o comércio de peças usadas e crie instrumentos que dificultem o comércio de componentes oriundos de roubo ou furto. A principal sugestão deles é a criação de uma lei federal que obrigue as montadoras a identificar as principais peças, vinculando-as ao número do carro.

"Com uma lei deste porte, nós teríamos condições de comprovar na hora se a peça é roubada. O empresário iria preso. Se o sinal de identificação da peça estivesse adulterado, iria preso também. O criminoso não teria saída", afirma o delegado Cassiano Aufiero.

O delegado da Polícia Federal e coordenador do Núcleo de Pesquisas de Segurança Pública da Universidade Tuiuti, Algacir Mikalovski, concorda e vai além. Para ele, o governo federal deveria criar mecanismos que obrigassem as montadoras a abrir seu banco de dados, possibilitando o rastreamento das peças. "Só vamos conseguir atingir este setor com leis federais, com a colaboração das indústrias automobilísticas e com a maior fiscalização por parte do poder público", avalia.

Ação conjunta

Se por um lado polícia e Receita Estadual reconhecem que dispõem de um efetivo limitado para fazer as vistorias, por outro, ações conjuntas realizadas entre órgãos públicos têm demonstrado que a união pode fazer a diferença. Em outubro, por exemplo, a Delegacia de Furtos e Roubos de Veículos (DFRV) conduziu – em parceria com a Receita, Ministério Público e Detran – a "Operação Transformers". Em dois dias, 24 autopeças foram fiscalizadas. Cinco delas acabaram fechadas por falta de alvarás.

A partir de então, a DFRV adotou um novo protocolo nas fiscalizações: se há indícios de irregularidades, os policiais acionam a Receita Estadual. "Se não comprovamos o comércio ilegal, a Receita vai aplicar as multas por falta de notas. Dependendo do tamanho da multa, é a pena de morte da empresa. É uma maneira de atacar os maus empresários", explica Aufiero.

Quatro meses depois de a Operação Vortex ter apontado um esquema de corrupção envolvendo policiais e desmanches de veículos roubados, a Polícia Civil intensificou a fiscalização a ferros-velhos e lojas de autopeças. De lá para cá, 162 estabelecimentos foram notificados por irregularidades e oito, fechados. Apesar da ofensiva, a falta de leis específicas limita a atuação das autoridades e dificulta a identificação de componentes roubados que estejam sendo vendidos nestes locais.

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INFOGRÁFICO: Veja o número de comércios vistoriados e notificados em quatro meses

Nas vistorias, além de verificarem se a loja está em dia com o alvará de funcionamento expedido pela Polícia Civil, os policiais também fazem um pente-fino nas peças e carcaças de veículos. A principal dificuldade é conseguir comprovar que os componentes comercializados foram retirados de carros furtados ou roubados. Sem isso, a receptação não fica configurada.

"A polícia trabalha com provas. Então, se não provarmos que determinado produto é roubado, o dono da loja não vai preso. Por mais que o policial saiba [que o produto é roubado], tem que provar. Mas, como há muitas brechas, a polícia acaba ficando de mãos atadas na maioria dos casos", disse o delegado Cassiano Aufiero, chefe da Delegacia de Furtos e Roubos de Veículos (DFRV) de Curitiba.

Um dos principais problemas é que a lei estabelece que as montadoras identifiquem numericamente poucas peças – a numeração do chassi deve constar no motor, para-brisas e vidros laterais. Sem a identificação, os policiais não conseguem comprovar o vínculo de determinada peça com um automóvel que tenha sido levado por bandidos.

Além disso, a falta de numeração nas peças deixa uma lacuna que permite aos ferros-velhos burlar a fiscalização. Algumas lojas usam notas fiscais de itens legalizados para "esquentar" produtos irregulares. "Como a grande maioria das peças não é numerada, o empresário usa a mesma nota mil vezes. Isso dificulta a fiscalização", resume Riad Farhat, delegado-geral da Polícia Civil do Paraná.

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Reforço

Paralelamente, outros órgãos – como prefeitura e Receita Estadual – fiscalizam os ferros-velhos sob o ponto de vista administrativo. Na Receita, por exemplo, os inspetores fazem um pente-fino nas notas fiscais eletrônicas de entrada e de saída das empresas. Um eventual desequilíbrio indica fraudes.

"Nessas circunstâncias, a gente pode enviar uma equipe ao local ou designar uma auditoria na empresa", explica o assessor-geral de Inspetoria de Fiscalização da Receita Estadual, Gilberto Favato. "Este setor tem demandado muito trabalho. Há empresas que praticam operações fantasmas e que trabalham com sócios laranjas", completa.

Estigmatizado, setor acumula prejuízo

Apesar das irregularidades encontradas em lojas do setor, polícia e Receita Estadual destacam que a maioria das autopeças e ferros-velhos trabalham dentro da lei. Porém, os lojistas reclamam que os resultados da Operação Vortex acabaram por estigmatizar a atividade. Alguns apontam que o movimento chegou a cair 30% e ainda não se recuperou.

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Um dos empresários é Valdir Chagas, dono da Autopeças Merculin 46, em Curitiba. Há 25 anos no ramo, ele compra em leilões carros sinistrados e garante que todos os componentes vendidos em seu estabelecimento têm nota fiscal. Apesar disso, ainda sofre os efeitos da desconfiança que paira sobre o setor.

"Em todas as áreas, existem os bons e os maus. Mas teve uma generalização. Todos os lojistas foram colocados no mesmo bolo. Ficou ruim para gente", diz. Ainda assim, ele apoia o endurecimento da fiscalização. "Para quem trabalha direitinho, isso é bom. Vai tirar de circulação quem está fora da lei."

Outro lojista, Ildo Ivan Schmidt, menciona que as vistorias se tornaram mais rígidas, mas ele também vê o endurecimento com bons olhos. "A fiscalização tem que ser assim mesmo", diz. Os empresários defendem a ampliação da investigação sobre os desmanches. "Tem muitos clandestinos por aí, muita autopeças de fundo de quintal, muita gente que trabalha de portão fechado. É esses que têm que ser pegos", afirma Chagas.

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