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Cadernos do cárcere

Leitura muda rotina de prisão

A banda Bad Religion é um dos grandes nomes da cena punk rock mundial | Divulgação/Seven Shows
A banda Bad Religion é um dos grandes nomes da cena punk rock mundial (Foto: Divulgação/Seven Shows)

Os números ocupam o tempo dos detentos da Penitenciária Central do Estado (PCE), em Piraquara. Samuel dos Santos, 32 anos, 20 de condenação, 12 de cadeia, subtrai cada minuto que antecede sua condicional. Reinaldo dos Santos, 30 anos, uma década e dois meses de cela, iniciou a contagem regressiva para os oito meses que lhe restam atrás das grades. João Batista Lima, 23 anos, 15 de pena e 3 anos e 10 meses na grade – idem. "É uma questão de meses", consola-se. O balanço das horas, contudo, não é o único cálculo que o trio costuma fazer. Samuel, Reinaldo e João também contabilizam os livros que leram. E tem sido bem divertido.

O ranking de 2006 já está pronto: Samuel, atualmente numa batalha para vencer Crime e Castigo, de Dostoievski, é o recordista – 50 títulos, seguido de Reinaldo, com 47, e de João, com 41 livros. A contabilidade literária é acompanhada na ponta do lápis por ninguém menos do que a professora de Matemática Terezinha Crocetta, do Centro de Educação Especial de Jovens e Adultos (Ceebja) Mário Faraco. Exato – pela professora de Matemática.

Terezinha tem uma década de serviços prestados à educação no sistema prisional. Mas foi há pouco mais de dois anos – depois de camelar muito ensinando as quatro operações para alunos que abandonaram a escola décadas atrás, ou nem passaram por uma –, que o inesperado aconteceu. Um detento lhe perguntou que livro era aquele que carregava debaixo do braço. Ela não só mostrou como respondeu com um sonoro "quer ler?". Pois o moço quis, devolveu, pediu mais, trouxe mais gente, até formar um arrastão de leitura que hoje abrange os 150 estudantes do Ceebja na PCE.

Para abastecê-los, Terezinha carrega livros e mais livros em sacolas transparentes – para não enlouquecer os agentes penitenciários na hora da revista – e forra o porta-malas de seu carro com doações e compras que faz nas livrarias. A frase no pára-brisa do veículo é o resumo da ópera: "Só por Deus." Ela acha graça de tamanha popularidade, rara no campo da aritmética. "É minha missão, meu melhor trabalho em 32 anos de magistério", festeja. A função de biblioteca ambulante da PCE inclui levar consigo um fichário, pelo qual monitora cerca de 200 empréstimos, organiza a fila de espera e engrossa a lista de encomendas. Uma trabalheira. No momento, os pedidos insistentes são para que traga Ponto de Impacto, o último livro de Dan Brown, autor de Código Da Vinci – best seller local, embora a anos-luz do norte-americano Sidney Sheldon – o Shakespeare dos detentos.

Para a professora, difundir a leitura junto aos presos exige abrir mão do preconceito. "Importa para mim que eles descubram que ler é bom. Ponto. O resto vem com o tempo", explica, enquanto mostra a lista de livros que vai do popularíssimo Sheldon a mestres da literatura russa, auto-ajuda do guru da felicidade Augusto Cury e modismos irresistíveis como Por que os Homens Fazem Sexo e as Mulheres Fazem Amor, de Allan e Barbara Pease. "Você já leu?", pergunta Terezinha, com a mesma empolgação que acabou provocando uma febre na penitenciária e uma causa abraçada pelos 70 educadores da escola. A expansiva Tere já conta com fiéis soldados, como a professora de Literatura Josiane Kienen, parceira no comboio das Letras PCE adentro. E virou um dos cartões de visita do Ceebja no ano que completa bodas de prata.

Não à toa. De longe, o arrastão da leitura é uma das melhores notícias do sistema prisional. Tanto que a própria PCE decidiu se somar à turma do Ceebja e criar mais um programa de leitura, já aprovado pelo diretor José Guilherme Assis. Começa depois da Páscoa e promete: 2 das 12 galerias que formam a penitenciária receberão livros e revistas diariamente. Ao final do mês, quando houver a troca do material, os encarcerados poderão falar da experiência. É o laço de fita do projeto. O método – simples e barato – é aplicado com sucesso na Penitenciária Estadual de Foz do Iguaçu. "Lá, os presos acabaram formando um clube da leitura. Aqui não vai ser diferente, tenho certeza. Eles vão se sentir valorizados. Quem lê, cativa outras pessoas, tem o que dizer", empolga-se a pedagoga da PCE, Conceição Oliveira, que vai implantar a idéia na unidade de Piraquara e já conta com 40 livros para iniciar o trabalho.

Sobram evidências de que prática de leitura e cárcere são uma combinação explosiva – no melhor sentido da palavra. Os ânimos no Ceebja Mário Faraco e na PCE não negam – até porque nos últimos anos as atividades para detentos entraram em declínio. As rebeliões nos anos 2000 e as investidas do crime organizado tornaram cada vez mais arriscada e complexa a administração penitenciária, levando para o fosso atividades extra-sala, como a informática. Por tabela, diminuiu também a capacidade das salas de aula, hoje disponíveis apenas para 10% dos presos na PCE. A chegada de um livro às mãos do preso ou ser selecionado para freqüentar as aulas tem o efeito de similar ao da redução de uma pena.

Com a palavra

O melhor termômetro desse resultado é a palavra do próprio detento, como a reportagem pôde conferir na semana passada. A começar por Reinaldo. Ele pediu para ficar sem algemas: estava ansioso para folhear o livro que acabara de receber de Terezinha, O Pecador, de Tess Gerritsen, autora conhecida como o Robin Cook de saias. E para falar de O Caçador de Pipas, de Khaled Housseini, da sua lista de 2007. "Tudo bem...", diz o algemado que lembra ter aprendido a ler na marra, quando era aluno do Colégio Estadual Padre Cláudio Morelli, onde encontrou uma professora de Português que era dura na queda. "Ela pedia resumo. Exigia. Foi bom. Peguei gosto na leitura ali."

A escola acabou sendo abandonada na 5.ª série e só retomada no sistema, onde Reinaldo faz o ensino médio e sonha cursar Direito. Enquanto isso, lê até três títulos por semana, sobre os quais fala com propriedade, principalmente com o vizinho de cela Samuel. "Fico 90% do tempo sem ter o que fazer. A leitura é uma fuga, me leva para outro lugar", resume. Samuel assina embaixo. "As histórias me levam para mundos diferentes. Tem horas em que me sinto um personagem", explica o rapaz que é egresso do Colégio Estadual Conselheiro Zacarias. Ele rasga um latim danado em suas tergiversações beletristas e – o que é raro – teve uma carreira estudantil que correu sobre trilhos. Até entrar para o sistema.

João, o mais jovem e mais tímido do trio, estudou até a 5.ª série. Aos 14 anos abandonou o Colégio Estadual Conselheiro Carrão, deixando para trás a fama de aluno rebelde. O primeiro livro da vida, confessa, foi lido na cadeia – o sugestivo Nada Dura para Sempre, de Sidney Sheldon. Foi difícil. "A obra estava baleada", brinca, sobre o estado de penúria do exemplar que já tinha passado por umas 1,5 mil mãos antes de chegar até ele, dando início a uma comovente história de amor à leitura. O preso com pinta de cantor de rap e que sonha cursar Educação Física devora 600 páginas em dois dias. Quando sair, em breve, vai beijar as mãos da professora Terezinha. "Ela é o nosso anjo", diz, sobre a mulher que aliviou sua pena.

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