Uma letra "T" grafada em vermelho na declaração de óbito servia para identificar os corpos dos militantes de esquerda mortos durante a ditadura militar e que eram enterrados como indigentes no Cemitério de Perus, em São Paulo. A afirmação foi feita na tarde desta segunda-feira (24), na Assembleia Legislativa Paulista, por Antonio Pires Eustáquio, ex-administrador do Cemitério de Perus entre os anos de 1976 e 1992.
"As declarações de óbito tinha informações mínimas [sobre os corpos dos indigentes]. Normalmente tinha uma letra 'T', vermelha, que caracteriza hoje o que seriam os 'terroristas'", disse.
Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade e à Comissão Estadual da Verdade de São Paulo, Eustáquio não conseguiu determinar a quantidade de corpos de militantes que foram enterrados em Perus durante a ditadura, mas disse que os trabalhadores do cemitério anteriores à sua gestão lhe relatavam que os corpos dos militantes chegavam ao local sob forte esquema de segurança e que eram enterrados como indigentes em caixões de madeira bruta, cada qual em uma sepultura. Os corpos dos militantes eram enterrados nas quadras 1 e 2, da gleba 1, onde também eram sepultados os indigentes.
"Foram as primeiras quadras usadas para sepultamento de indigentes. As demais eram separadas para sepultamentos de familiares. Eles eram enterrados no meio do indigente comum. Depois que descobri que ali estavam militantes políticos, consegui ouvir declarações [de funcionários mais antigos] de que quando chegava este pessoal que chamavam de 'terrorista', chegava um camburão. E às vezes com um só [corpo], o que não era comum. O militante chegava com um aparato político junto, um forte esquema policial", descreveu.
Distinção
No início, Eustáquio disse que não sabia que aquela letra "T" se referia aos militantes que foram mortos na ditadura. "Eu não sabia [que aqueles corpos eram de militantes]. Vim a saber sobre isso depois, participando de reuniões com familiares. Aquela letra 'T' vermelha era uma distinção, colocada em cima da declaração de óbito", explicou.
Segundo Estáquio, houve um momento em que a prefeitura e a administração funerária de São Paulo decidiram que era preciso dar fim aos restos mortais dos militantes políticos. A solução que encontraram foi criar uma vala comum, próxima a um barranco, de 0,80 metro por 30 metros e três metros de profundidade, segundo Eustáquio, para ali serem depositados cerca de 1,5 mil ossadas. Na vala, disse, teriam sido sepultados entre seis e oito militantes.
Logo após a Anistia Política, Eustáquio disse ter sido orientado por membros da administração funerária da gestão Mário Covas (1983-1985) a não fazer alarde e não contar sobre a existência da vala comum. "Foi-me pedido pelos meus superiores. [Eles disseram que] tinha havido a Anistia e iriam aparecer muitos curiosos procurando por pessoas desaparecidas. E disseram para eu não mostrar os livros, para não dar muita continuidade a esse processo de procura por intermédio de pessoas não identificadas pelo serviço funerário", disse.
Apuração
A vala clandestina de Perus foi aberta em setembro de 1990 durante o governo da então prefeita de São Paulo, Luiza Erundina. No local foram encontradas 1.049 ossadas sem identificação¸ a grande maioria pertencente a indigentes e vítimas de esquadrões da morte. Mas corpos de presos políticos também foram enterrados no local. De acordo com a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, seriam 14. Na época, a prefeitura determinou a apuração dos fatos e fez um convênio com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para a identificação das ossadas. Os trabalhos tiveram início em 1990, mas, das mais de mil ossadas, apenas doze foram sido identificadas.
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