Nos últimos meses, em diversas decisões e discursos de magistrados do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e também em pareceres da Procuradoria Geral da República (PGR) e do Ministério Público, uma máxima tem sido repetida com frequência: a de que a liberdade de expressão não é um direito absoluto. A ideia em si está certa, mas a sua reiteração como argumento para avançar sobre uma das garantias fundamentais é preocupante, dizem juristas consultados pela Gazeta do Povo.
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Em agosto, por exemplo, o ministro do STF Alexandre de Moraes determinou buscas nas casas do cantor Sérgio Reis e do deputado Otoni de Paula (PSC-RJ), aliados do presidente Jair Bolsonaro, por “eventual cometimento do crime de incitar a população, através das redes sociais, a praticar atos violentos e ameaçadores”. Em sua decisão, Moraes afirmou que “o exercício da liberdade de expressão não se reveste de caráter absoluto”.
Também em agosto, em entrevista à Globo News, o ministro Gilmar Mendes lembrou que “há limites para a liberdade de expressão” quando falava sobre a situação do ex-deputado Roberto Jefferson, presidente nacional do PTB, preso em agosto.
No começo de setembro, em um parecer contra a recente Medida Provisória de Bolsonaro que alteraria o Marco Civil da Internet, o procurador-geral da República, Augusto Aras, recordou um voto recente do ex-ministro do STF Celso de Mello, em que se afirmava que “a liberdade constitucional de expressão do pensamento não legitima o discurso de ódio”.
Na visão do jurista Ives Gandra, o fato de a liberdade de expressão ser relativa não pode se tornar pretexto para abusos no Poder Judiciário. “Você não pode dizer o que quiser, e existem os instrumentos para efetivamente defender alguém porque você atingiu a honra, ou ofendeu fulano etc. Mas isso não pode justificar o "novo Código Penal" que foi criado pelo Supremo Tribunal Federal, com prisões preventivas contra a liberdade de expressão. Em vez de se fazer o devido processo legal para uma ação de indenização por danos morais etc., fazem uma prisão preventiva pelo fato de que o cidadão disse tal coisa que desagradou”, critica.
Sanção preventiva vai contra tradição jurídica do Brasil sobre liberdade de expressão
André Gonçalves Fernandes, pós-doutor em Antropologia Filosófica pela Universidade de Navarra (Espanha), explica que a ideia de impor sanções às pessoas de forma preventiva por manifestarem suas ideias vai contra a tradição do Direito no Brasil, que, em alguns aspectos, costumava caminhar junto com a doutrina norte-americana no que se refere à liberdade de expressão.
Nos EUA, explica Fernandes, “parte-se da ideia do ‘livre mercado de ideias’, e protege-se a liberdade de expressão como um meio de assegurar a pluralidade política”.
Atualmente, a proteção à liberdade de expressão nos Estados Unidos não encontra paralelo no mundo. A expressão de ideias políticas e mesmo a difamação de personalidades públicas gozam de alto grau de proteção pelo Direito norte-americano. Para muitos estudiosos, o sistema americano é desequilibrado, já que privilegia demais, por exemplo, a proteção da expressão em detrimento da honra.
Já o modelo brasileiro, que guarda alguma relação com o americano mas também compartilha da tradição de muitos países europeus, promove maior equilíbrio entre valores constitucionais na decisão de casos concretos. Isso acaba, muitas vezes, jogando grande responsabilidade no colo de juízes.
De qualquer forma, segundo Fernandes, tanto no Brasil como nos Estados Unidos “evita-se, ao máximo, um tipo de intervenção dita como preventiva, que eles chamam de ‘prior restraint’. Valoriza-se o que eles chamam de ‘subsequent punishments’, que é a punição posterior”.
Para o especialista, a reiteração no Poder Judiciário brasileiro da ideia de que a liberdade de expressão não é um direito absoluto representa uma ameaça. “Esse tipo de sinalização ou comportamento reiterado é perigoso na medida em que é importante para a sociedade, sobretudo no terreno da política, que haja a maior amplitude possível na divulgação das ideias”, afirma.
Gandra considera inconstitucional o caráter preventivo de certas prisões decretadas pelo STF sob alegação de abuso do direito à liberdade de expressão. “Cada vez que nós fazemos as coisas preventivamente, estamos subjetivamente deixando a alguém a responsabilidade de decidir o que é ou não é democrático, o que é ou não liberdade de expressão, o que é ou não abuso, sem que eu tenha um tipo definido penalmente. A lei que tem que ser absolutamente clara na punição é a lei penal, porque diz respeito à liberdade da pessoa. Não admite relativização. O que nós estamos tendo é uma relativização. Tipos penais criados pela Suprema Corte”, observa.
Um exemplo dessa relativização, segundo ele, ocorreu com a prisão do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ). “O deputado Daniel poderia ser punido de que forma? Poderia ser punido pelo CongressoNacional, e deveria ser, porque o que ele disse foi, evidentemente, tresloucado. Mas nunca ser preso como foi, porque era uma manifestação dele. Deveria ser punido por falta de decoro parlamentar, mas não ser punido com prisão, como se a Lei de Segurança Nacional [LSN] fosse mais importante que a Constituição”, afirma Gandra, em referência à aplicação da LSN para embasar a detenção de Silveira.
Fernandes recorda que a liberdade de expressão não é absoluta quando há ameaça “certa e grave” a outros bens legais como a vida, a honra e o patrimônio pessoal. Para ele, a reiteração de que o direito à liberdade de expressão não é absoluto “só é conveniente em casos em que existe um dolo específico que não fique só no terreno das ideias – por mais tosca que a ideia pareça –, mas que proporcione ameaça certa e grave”.
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