Autoridades sanitárias da Secretaria Municipal de Saúde de Botuverá, município do interior de Santa Catarina, e agentes da Vigilância Sanitária – acompanhados por policiais militares – interromperam a celebração de uma missa de Crisma no último sábado (28). A celebração religiosa na Paróquia São José era presidida pelo Arcebispo Metropolitano de Florianópolis, Wilson Tadeu Jönck, e precisou ser encerrada antes do rito de Comunhão.
Segundo a prefeitura de Botuverá, a decisão se deu porque a celebração estaria em desacordo com as regras para frear a transmissão da Covid-19. Em nota oficial publicada no dia 30 de novembro, a prefeitura explicou que a medida se baseou na Portaria 821, publicada pela Secretaria Estadual de Saúde de Santa Catarina em 23 de outubro. Em seu artigo 2º, a norma determina que, nas regiões que estiverem em Matriz de Risco Potencial Gravíssimo, como é o caso da área em que a paróquia está localizada, fica proibida a realização de eventos sociais.
Um dos problemas do caso é o fato de a missa ter sido considerada como “evento social” e não cerimônia religiosa. Há outro instrumento normativo do governo do estado que estabelece as diretrizes específicas para celebrações religiosas. A norma em questão (Portaria 736, de 23 de setembro) determina que, em caso de Matriz de Risco Potencial Gravíssimo, a lotação máxima autorizada nos templos religiosos ou igrejas deve se restringir a 30% da capacidade do local – medida que foi observada pela Paróquia São José.
Além disso, autoridades locais já haviam concordado com a realização da missa. Ainda na nota oficial, a prefeitura reconheceu que em reunião realizada na véspera da celebração entre o prefeito do município, o assessor jurídico da prefeitura e o pároco, padre Paulo Riffel, havia sido definido que a missa seria realizada. A administração municipal salientou, porém, que houve entendimento diferente por parte do Ministério Público e da Secretaria de Estado de Saúde. No documento, a prefeitura também afirmou que solicitou ao pároco que o "evento" fosse adiado.
Missa foi celebrada no salão da paróquia para promover maior distanciamento social
De acordo com o padre Paulo Riffel, que é pároco, o local da celebração foi alterado da igreja para o salão da paróquia para abrigar todos os fiéis mantendo a lotação máxima de 30% da capacidade. O espaço tem capacidade para 1.200 pessoas, e a missa tinha aproximadamente 300 participantes. Riffel afirmou que a mudança de local fez com que as autoridades sanitárias entendessem que se tratava de um evento social.
Ele contou ainda que, dois dias antes da celebração, agentes da Vigilância Sanitária visitaram o salão e ajudaram a organizar o espaço para torná-lo mais seguro contra eventuais transmissões da Covid-19. No dia da celebração, ele recebeu mensagem pelo WhatsApp, de um dos agentes, informando que a missa não poderia mais ocorrer. Ele, então, procurou o prefeito da cidade, que permitiu a realização. O sacerdote explicou que foram reservados 312 lugares espaçados para receber os fiéis.
“Tudo estava correndo da melhor forma possível, mas na metade da missa veio a secretária da Saúde com a vigilância e alguns policiais para interromper a celebração”, declara. “Foi um atentado contra a fé católica, contra os nossos católicos de Botuverá. Fico muito triste”, afirmou o padre a um jornal local, o Olhar do Vale.
Arcebispo de Florianópolis questiona declaração da prefeitura
Um dia após a publicação da nota oficial por parte da prefeitura, o Arcebispo Metropolitano de Florianópolis, Wilson Tadeu Jönck, emitiu uma nota de esclarecimento. No documento, ele afirmou que todas as 70 paróquias que integram a arquidiocese são orientadas a seguir as normas determinadas pelas autoridades sanitárias quanto aos cuidados preventivos com relação à Covid-19. Especificamente quanto ao episódio na paróquia de São José, declarou que:
“(...) Tudo estava organizado seguindo à risca as normas da autoridade sanitária: distanciamento, lugares demarcados para todos os participantes, fornecimento de álcool gel. Todos os presentes usavam máscaras. O fato de que a missa tenha sido no salão deve ser visto sobretudo como um esforço para cumprir aquilo que é o espírito das normas sanitárias”.
Em outro trecho, Jönck salientou:
“Causa revolta, quando o argumento usado é de que pelo fato de a missa ser celebrada no salão ela se tornava um evento e este era proibido. Ora, se não se consegue ver a diferença entre uma missa e um baile de carnaval, se torna difícil conversar. Havia uma insistência para se achar um motivo para implicar. Sinceramente, não consigo encontrar o motivo para tal implicância. Mas deve haver um motivo”, afirmou o arcebispo.
Juristas apontam que episódio fere liberdade religiosa
Na avaliação de Thiago Rafael Vieira, advogado especialista em Direito Religioso e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião, as autoridades de Saúde erraram ao classificar a celebração religiosa como um evento social. “A missa aconteceu no salão justamente para ter um espaço maior e evitar contaminações. Mas, mesmo sendo feita em um salão, continua sendo um ato litúrgico, continua sendo uma missa”, destacou.
“Não é o prédio que define se um ato é ou não religioso. Isso o próprio STF já decidiu quando tratou da aplicação da imunidade tributária, e afirmou que a imunidade não incide apenas sobre o templo, mas sobre toda e qualquer a atividade que esteja vinculada à atividade essencial da igreja”, sustentou, citando o Recurso Extraordinário 325.822, julgado pelo tribunal em 2004. “Se fosse uma festa de aniversário da paróquia, um churrasco de comemoração de um santo ou um baile, por exemplo, era um caso. Mas o que estava sendo feito no salão paroquial era uma missa”, reforçou o jurista.
O advogado Felipe Augusto Carvalho, que é diretor executivo da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), também questionou a interferência das autoridades sanitárias em uma celebração religiosa. “Nós consideramos que as cerimônias religiosas merecem uma atenção particular por parte do poder público, especialmente porque os cultos são protegidos por um direito fundamental que é a própria liberdade religiosa”, declara, reforçando que a Secretaria de Saúde do Município deveria ter observado a norma em vigor que regula especificamente as atividades religiosas.
Carvalho destacou que o episódio feriu a liberdade religiosa porque interferiu em um aspecto central a esse direito, que é a liberdade de culto. O jurista ainda apontou desproporcionalidade por parte dos agentes públicos, porque não havia comprovação de que a igreja não estava adotando os protocolos de segurança.
Da mesma forma, o presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião classificou o caso como uma ameaça e um ataque à liberdade religiosa.
“É uma ameaça porque observamos um movimento por parte de alguns governantes no sentido de desconsiderarem a importância da fé para as pessoas ao tomarem iniciativas restritivas sem maiores cautelas e sem razoabilidade”, apontou. “Por outro lado, é também um ataque porque especificamente o direito à liberdade de culto dos fiéis foi violado quando o culto foi interrompido”.
A Gazeta do Povo tentou entrar em contato com a secretária de Saúde de Botuverá, Márcia Adriana Cansian, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.
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