| Foto: Arte: Felipe Lima – Foto: Thiago Vilas Boas

"A-S-D-F-G". Essa fileira de letras, suspeito, soa como música na memória de milhares de brasileiros. Basta repeti-las para lembrar as primeiras lições de datilografia, na aurora de nossas vidas, em belas tardes vadias. Se aprendêssemos a "bater máquina", como se dizia, poderíamos arrumar emprego num banco, ou num escritório, livrando-nos dos rigores do trabalho braçal. E era preciso bater bem. Havia concorrência, por isso as escolas mais conceituadas cobriam o teclado com uma caixa de papelão, obrigavam a sentar ereto e a fitar o olho no rolo de papel. Metodologia pura. Tinha até mapinha.

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O preço do sacrifício seria poder declarar no currículo: "Bom datilógrafo". Na hora do "teste de datilografia" – obrigatório nas firmas, claro –, alguns se embananavam ao ter de colocar o carbono entre duas folhas de sulfite. É operação que exige a destreza de um samurai. Quantos e quantos venceram na vida graças às aulas das donas Celestes e dos seus Eustáquios...

Como se sabe, essas histórias dormem em algum lugar do passado, ao lado do Código Morse. Farejando bem, contudo, a gente ainda encontra quem não abra mão das econômicas e ergonômicas máquinas de escrever, e até quem tire delas o seu sustento. Já viu algum datilógrafo com tendinites e bursites? Eu não. Carregar o trambolho, puxar o carro e desemperrar a letra "a", sempre ela, fortalece os músculos.

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Se as estatísticas sobre autônomos do site Curitiba em Dados estiverem corretas, a capital tem 856 profissionais que se apresentam como datilógrafos. Correspondem a 0,048% da população e são uma elite tecnológica. Há regiões mais pródigas, é verdade. Enquanto os bairros Augusta, Bigorrilho, Campo de Santana, Cascatinha, Caximba, Ganchinho e Riviera oficialmente não abrigam nenhum datilógrafo de carreira, o Centro tem 79. Em segundo lugar viriam o Bacacheri e a Água Verde, ambos com 46; e a CIC, com 31.

Suspeito que, se há quem pague as contas prestando serviços de datilografia, tem também quem ainda ensine a datilografar. Procurei professores, sem sucesso. Bati numa porta do Centro – mas o letreiro Escola Santo Antônio, na Presidente Faria, "está ali só pra bonito", como me informou uma vistosa moça do bar do lado. Da academia da Avenida Erasto Gaertner, disponível nos sites de procura, nem sombra. E ainda tive de aguentar gargalhada por perguntar: "É nesse prédio que tem uma escola de datilografia?" Alô-ô... [risos]

Bem, digamos que o mercado não anda muito favorável. A loja que consertava máquinas na Rua Conselheiro Laurindo fechou. Em seu lugar, uma empresa de segurança privada e eventos. A AW Máquinas, na Rua Comendador Macedo, resiste. A freguesia é de colecionadores e de alérgicos a novidades. O local faz a alegria dos ferros-velhos. "Dias atrás desmontei cinco, seis máquinas que já não tinham peça e passei para o carrinheiro", lamenta o veterano Mário Bortolaz Filho, no ramo desde 1972, diante dos cemitérios de Royals e Olivettis à espera de um comprador.

Um dos clientes ilustres da AW Máquinas é o advogado Edenan Martinez Bastos, 79 anos (foto). Pelas suas contas, datilografa há 65 anos, ininterruptamente. Da primeira máquina, não esquece: "Uma Remington", gaba-se. Deve à datilografia seu début no mundo do trabalho. Depois vieram o Direito, a criminalística, as causas previdenciárias, mas nunca sem datilografar, qual o poema Máquina de escrever, de Drummond. Seria um desperdício: o homem é um zás do teclado, ultrajando os catadores de milho, que batem com dois dedos.

Edenan datilografa todo santo dia – para alegria dos digitadores, contratados para jogar os processos no computador. E para surpresa dos fóruns e tribunais, nos quais é apontado como "o advogado que faz tudo à máquina". "Estou de fato desatualizado", admite, prometendo para o ano que vem um curso de informática básica. "Vou fazer 80 anos. Não tem mais escapatória." Malditos tempos modernos.

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