Dezesseis dias depois de voltar de um protesto em Brasília diante do STF (Supremo Tribunal Federal), a líder kaiowá Marinalva Manoel, de 27 anos, foi assassinada a golpes de faca em Dourados (MS). O corpo foi encontrado na madrugada de sábado (1º), às margens da BR-163.
Mãe de dois filhos, ela pertencia à comunidade Ñu Porã, um conjunto de barracos de lona onde moram 28 famílias kaiowás. Eles reivindicam cerca de 1.500 hectares, quase todos ocupados por uma empresa de cultivo de grama. A área, embora em processo avançado de demarcação, também sofre pressão de fazendas vizinhas e até de um projeto de loteamento, já que está bem próxima do casco urbano.
Segundo o cacique Valdemir Cáceres, 45, o principal suspeito do assassinato é o namorado de Marinalva, que tem ligações com fazendeiros da região. "Ela é companheira de luta", afirmou, por telefone. A Polícia Civil investiga o caso.
Confinada em pequenas terras indígenas superpovoadas ou em acampamentos à beira de estradas, a população guarani-Kaiowá de Mato Grosso do Sul, de cerca de 50 mil habitantes, é a que mais sofre com violência entre as etnias brasileiras. Dos 97 homicídios de indígenas registrados no país no ano passado, 39 (40%) ocorreram no Estado, segundo números do Ministério da Saúde.
Outro problema comum entre os indígenas da região é o suicídio: 73 casos no ano passado, quase metade dos 115 registrados em todo país.
Entre os dias 13 e 16 de outubro, Marinalva e outros 44 índios guaranis-kaiowás viajaram de ônibus a Brasília. Ali, acamparam diante do STF e se reuniram com procuradores do Ministério Público Federal contra uma decisão da 2ª turma que ameaça reverter a demarcação de terras indígenas identificadas pela Funai (Fundação Nacional do Índio) em Mato Grosso do Sul e em outros Estados.
A decisão, ainda não ratificada pelo plenário, anula a demarcação da terra indígena Guyraroká, em Caarapó (MS), sob o argumento de que a Funai não pode demarcar terras indígenas caso não houvesse índios ocupando a área em 1988, ano da promulgação da Constituição.
O temor dos indígenas é que uma decisão desfavorável criará jurisprudência para outras demarcações. Uma delas é a própria Ñu Porã, onde os kaiowás ocupam apenas uma franja há 44 anos, embora estudos antropológicos tenham identificado toda a área como ocupada tradicionalmente pela etnia.
No último dia 31, o procurador-geral da República recorreu da decisão do STF, sob o argumento de que os guaranis-kaiowás foram expulsos de suas terras antes da promulgação da Constituição e que, portanto, "há de ser relativizada a orientação quanto à referência temporal de 1988".
"O mais absurdo dessa decisão do STF é que ela acontece poucas semanas antes da divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade. A psicanalista Maria Rita Kehl, encarregada de cuidar dessa questão das violações de direitos praticadas contra os povos indígenas no período 1946-88, pôde constatar que a remoção forçada das comunidades guaranis-kaiowás foi uma política oficial do Estado brasileiro em todo esse período. Há numerosos exemplos em que as comunidades foram retiradas de seus locais de ocupação tradicional pelo próprio SPI (Serviço de Proteção aos Índios) e, depois, pela Funai", afirma o antropólogo Spensy Pimentel, da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana).
"Como é que o STF quer definir a impossibilidade de uma comunidade ter o direito a sua terra baseando-se na ideia de que o grupo não estava no local em 1988, quando ela foi retirada dali à força pelo próprio Estado anos antes?", completou Pimentel.