A decisão unânime dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), em meados de junho, de liberar a realização da Marcha da Maconha, que defende a legalização da droga, levantou a discussão sobre os limites da liberdade de expressão. Os direitos constitucionais de reunião e livre expressão do pensamento foram justamente os argumentos usados pelos ministros do Supremo para autorizar a manifestação. O ministro Ayres Britto chegou a afirmar que "a liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade." Até que ponto, porém, pode ser levada a liberdade de expressão? Qualquer tipo de marcha, que defenda qualquer tipo de ideia, é lícita? De acordo com especialistas, a liberdade de expressão experimenta limites quando entra em choque com outros direitos constitucionais. É esse limite que faz com que manifestações que defendam, por exemplo, o nazismo, o racismo e outros preconceitos, sejam consideradas ilícitas. Há uma grande diferença entre defender uma mudança na lei de drogas e pedir alterações que atinjam a dignidade das pessoas.
Para o doutor em Direito das Relações Sociais e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) Eduardo Arruda Alvim, a liberdade de expressão é um direito consagrado na Constituição Federal, mas é importante que cautelas sejam tomadas para que não ocorram abusos. "A liberdade de expressão não é um direito absoluto. Ela encontra limites, dentre eles o princípio da dignidade da pessoa humana e outros direitos fundamentais."
Segundo Alvim, permitir manifestações racistas, seria, em última análise, "atritar com direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, que garantem o direito à igualdade entre todos e repele expressamente o racismo, a tortura." De acordo com Alvim, cabe ao Judiciário ponderar qual princípio deve prevalecer quando eles colidirem entre si. "Quando colidirem os princípios da liberdade de expressão, de um lado, e o direito à igualdade de outro [do qual decorre a proibição do racismo, por exemplo], parece que o Judiciário deverá dar prevalência a este último em detrimento daquele primeiro", diz.
O jurista René Ariel Dotti tem uma opinião semelhante. "O fascismo e o nazismo atentam contra a própria democracia, que é um regime que não aceita totalitarismos. Qualquer tipo de apologia ao crime atenta contra o Estado Democrático de Direito. É diferente de um movimento que pede uma alteração legislativa para tirar o caráter criminoso da maconha", afirma. Segundo Dotti, qualquer movimento queseja favorável a preconceitos ou a regimes totalitários atentam contra a democracia e têm caráter ilícito. "Um movimento racista constituiria um atentado contra a igualdade de todos", exemplifica.
De acordo com o presidente da comissão de Liberdade de Expressão da Ordem dos Advogados do Brasil no Paraná (OAB-PR) e professor de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Rodrigo Xavier Leonardo, a liberdade de expressão deve ser a regra. "Só há vedação quando um princípio aniquila o outro. Aí deve haver uma proporção entre os princípios constitucionais", afirma. Manifestações em prol de preconceitos e do nazismo, defende Xavier, tratam o outro com uma condição sub-humana. "O limite da liberdade de expressão é quando [esta opinião] reduz a condição humana de determinado grupo, a dignidade da pessoa humana ou se descumpre alguma lei."
Aumento das garantias
Para o cientista político e um dos organizadores da marcha da maconha, Marcos Magri, o evento liberado pelo STF pressupõe o aumento de garantias e direitos. "Já essas contramarchas [que defenderiam preconceitos] restringem direitos. Elas são destinadas à restrição do comportamento do outro", opina.
Xavier avalia que a marcha da maconha está amparada pela liberdade de expressão. "É absolutamente reconhecida a manifestação por uma alteração legislativa. O poder emana do povo e uma manifestação para alteração é diferente de uma manifestação para o descumprimento de lei", diz.
Alvim, aliás, lembra que isso faz toda a diferença. "No julgamento, o STF ressaltou a importância de que não haja, na marcha da maconha, incitação ou estímulo ao consumo de entorpecentes."
O princípio máximo do estado democrático
A dignidade da pessoa humana é um valor moral e espiritual inerente à pessoa, ou seja, todo ser humano é dotado desse preceito, que constitui o princípio máximo do estado democrático de direito. Entende-se que não há valor algum que supere ao da pessoa humana. Segundo a formulação clássica do filósofo Immanuel Kant (1724-1804), as pessoas deveriam ser tratadas como um fim em si mesmas, e não como um meio (objetos). O coletivo não poderia nunca sacrificar e ferir o valor da pessoa. O Estado existiria em função de todas as pessoas, e não elas em função do Estado. O princípio da dignidade da pessoa humana está elencado no rol de direitos fundamentais da Constituição Brasileira de 1988. Considera-se a dignidade da pessoa humana o núcleo essencial dos direitos fundamentais e um princípio absoluto, o que significa que deve sempre prevalecer sobre qualquer outro valor ou princípio.
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