O estampido de tiros já é quase tão freqüente quanto o apito do trem na linha férrea localizada no bairro Cajuru, entre as vilas Trindade e Autódromo, em Curitiba. Ricardo, 27 anos, nome fictício, foi mais uma das vítimas na "linha da morte", como é conhecida na região. Ele foi executado com dez tiros de pistola ponto 40, em plena luz do dia (por volta das 13 horas), na terça-feira passada, exatamente quando cruzava a estrada de ferro. Segundo dados da Polícia Militar, que a reportagem da Gazeta do Povo conseguiu com exclusividade, 29 pessoas foram mortas no Cajuru só nos primeiros 59 dias do ano. A média é de uma morte a cada dois dias.
A palavra homicídio é termo comum nas ruas do Cajuru, um dos bairros que mais têm invasões na capital, com 20 vilas. No lugar, segundo estudos feitos há cinco anos, disponíveis no site do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), a população é formada por pessoas com faixa etária média de 26 anos, de baixa escolaridade e de renda mensal inferior a um salário mínimo. Segundo especialistas, tudo isso é ingrediente para brigas, mortes e confusões, registradas nas ruas e também em locais que estão se tornando cada vez mais vulneráveis à violência, como a Escola Municipal Omar Sabbag.
Banalidade
Há anos, histórias de sangue são comuns no bairro Cajuru, especialmente nas vilas Trindade e Autódromo. Sábado retrasado, por exemplo, um homem foi morto a facadas na Travessa Lins, numa briga de família, e outro saiu ferido. A justificativa para tanto ódio, segundo moradores, é uma rixa antiga entre gangues, alimentada pelo tráfico de drogas. A estatística mostra que a cena se repete a cada dois dias.
"A linha virou ponto de acerto de contas de duas gangues (uma de cada vila) e de traficantes. Quem cruza para o outro lado morre", dizem moradores nas imediações, acuados e conformados.
Para se ter idéia da gravidade da situação, algumas pessoas estão dormindo no chão para se defender das balas perdidas. "Todo mundo sabe que aqui o tráfico de drogas e as gangues estão em guerra, inclusive a polícia", dizem anônimos. Ninguém quer aparecer e nem precisa explicar o porquê. Das ameaças, não escapam nem os religiosos (leia matéria ao lado). A reportagem localizou a mãe de Ricardo, executado na linha férrea no dia 25, mas ela não quis falar sobre o assunto. "Eu não sei de nada", afirmou.
Polícia
A Secretaria de Segurança Pública não abre números, nem divulga as ações que toma para conter a criminalidade nas vilas. Em nota oficial, informa que "os dados do Geoprocessamento, que faz o mapeamento do crime em Curitiba e nas principais cidades do estado, são de uso restrito das polícias, que baseiam suas ações de combate à criminalidade através de informações específicas geradas com extrema confiabilidade pelo sistema desde o início deste ano". O órgão descarta a possibilidade de divulgar qualquer dado pontual sobre uma região da cidade, para não "adiantar informações sobre o trabalho policial, prejudicando o resultado de prisões e investigações."
As únicas informações concretas repassadas se referem a prisões. Na semana passada, a Polícia Militar prendeu uma quadrilha de traficantes na Vila Trindade, em Pinhais e São José dos Pinhais. O grupo tinha armas de vários calibres, pasta-base para fazer pelo menos três quilos de crack, duas balanças de precisão, munição e R$ 8 mil em dinheiro. A Secretaria informa ainda que vários trabalhos especiais estão sendo feitos na região para identificar e prender criminosos.
Toque de recolher
A lei do silêncio impera na comunidade, mas nas rodinhas de bares, no comércio e nas portas de igrejas vozes se levantam para dizer a mesma coisa: gente séria não circula na rua após as 22 horas, exceto quando há um bom motivo.
O toque de recolher vale até nas igrejas. Missas, cultos, quase tudo termina antes das 22 horas. Depois disso, segundo os moradores, as ruas são tomadas pelas gangues, pelos traficantes e por usuários de drogas.
Um comerciante da Rua Trindade explicou a razão do pacto de silêncio adotado pelos moradores da região: "Tenho filhos, a minha família mora aqui. Não tenho condições de falar nada. É pela nossa segurança. Se eu colaborar com vocês não terei como continuar aqui."
Durante a apuração da reportagem, um entrevistado lembrou das intervenções feitas pela Secretaria de Segurança na Vila Torres e no Parolin, em Curitiba, e na Vila Zumbi dos Palmares, em Colombo. Ele não entende por que trabalho semelhante não é feito na região.
De acordo com o sociólogo Pedro Bodê, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade Federal do Paraná (UFPR), tudo isso apenas revela a vulnerabilidade da região. Ele lembrou, no entanto, que é preciso tomar cuidado para não superdimensionar o problema embora considere muito alto o número de mortes no local. Ele alertou, por outro lado, que independente do termo gangue, patota ou quadrilha a violência nas regiões de tráfico se resolve com investigação, serviço de inteligência e ações pontuais. "Isso pode ser um reflexo da concepção de segurança pública adotada, que não responde à situação existente", afirmou Bodê.
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