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O lobby favorável à legalização da maconha está ganhando força no Congresso nacional apoiando-se em uma retórica enganosa e em interesses bilionários. Usando como pretexto as propriedades medicinais da Cannabis sativa, associações e corporações que desejam uma liberação mais ampla da maconha no Brasil têm obtido espaço e influência em discussões na Câmara e no Senado.
A narrativa falsa desses grupos se sustenta em um problema real: há casos de doenças raras em que o uso de canabidiol – umas das centenas de substâncias presentes na maconha – pode ser a melhor alternativa terapêutica, como as síndromes de Dravet e de Lennox-Gastaut. Especialistas e parlamentares contrários à legalização da maconha já propõem, há anos, um meio-termo razoável: oferecer de graça o canabidiol, pelo SUS, aos portadores dessas doenças raras. Na prática, isso já acontece por meio de decisões judiciais.
O lobby da maconha, no entanto, não se contenta com essa alternativa, e pressiona por uma liberação ampla do cultivo e da comercialização da Cannabis sativa no Brasil. A finalidade alegada é sempre o potencial medicinal da planta. O conceito de "medicinal" sustentado por alguns dos lobistas, no entanto, é bastante amplo.
No último dia 23, por exemplo, participantes de uma audiência pública na Câmara defenderam a legalização do uso medicinal de todas as substâncias derivadas da maconha. Também apoiaram a liberação do plantio feito pelos próprios usuários. Um psicólogo de uma associação pró-Cannabis disse que o THC, substância responsável pelos efeitos alucinógenos da maconha, "não pode ser vilanizado".
Em abril, uma audiência pública no Senado teve discursos parecidos. Houve quem defendesse a prescrição de produtos derivados da Cannabis para pacientes com ansiedade, depressão e insônia.
"Maconha medicinal" é narrativa falsa, dizem especialistas
Para o presidente da Cruz Azul no Brasil, Rolf Hartmann, esse tipo de discurso compõe uma narrativa falsa apregoada por um lobby que, em diversas experiências internacionais, começa falando em propriedades medicinais para, aos poucos, ampliar seu escopo.
"Um dos pretextos desse lobby é a maconha medicinal, que não existe. Existem remédios que são feitos de uma das substâncias da maconha. Há um remédio que você faz a partir do veneno da jararaca, mas não é por isso que alguém vai criar uma jararaca em casa ou dar o veneno diretamente para a sua criança. O que não se está observando é o devido processo científico", critica Hartmann. "Plantar maconha dentro de casa não pode ser parte de um tratamento medicinal, não é científico. Fica claro, com esse tipo de discurso, que parece um pretexto, porque para outros tipos de substâncias a gente não teria esse lobby pela aprovação antes de que se apresentasse uma solução seguindo o devido processo científico."
O procurador da República Lucas Gualtieri, coordenador do Grupo de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público Federal em Minas Gerais (MPF-MG), diz que os lobistas "se utilizam da propriedade medicinal do canabidiol para legitimar o próprio discurso e quebrar uma eventual resistência à maconha". "Eles dizem: 'olha, a legalização vai permitir o tratamento de crianças com convulsão, de diversas pessoas com problemas graves de saúde. Por que é que você é contra isso?'. Acaba servindo mais como um argumento para esconder a real intenção, que é a legalização ampla", comenta.
Também seria um contrassenso, destaca Gualtieri, que as propriedades medicinais da planta justificassem o seu cultivo caseiro. "O que estão querendo é substituir a indústria farmacêutica. Não faz sentido dizer sobre um determinado medicamento que eu quero usar, mas não tenho dinheiro para comprar, que eu posso fabricá-lo – ou seja, pedir uma autorização do Estado para que eu substitua a indústria farmacêutica, que precisou apresentar uma série de testes e comprovações, seguir uma série de regras e protocolos para a produção daquele remédio. Ora, quantas ações judiciais a gente tem, tramitando no Brasil, que pleiteiam o custeio de medicamentos de alto custo? Por que, nessa situação, não se valer do mesmo caminho? Por que pedir uma autorização ampla do Estado para plantar a matéria-prima daquele medicamento? Não vejo sentido lógico nisso", diz.
Para o advogado Roberto Lasserre, coordenador nacional do Movimento Brasil sem Drogas, "não existe maconha medicinal". "Quando você fabrica um remédio, você extrai uma substância no laboratório ou então você retira da natureza uma molécula dentro de uma estrutura – no caso, uma planta – e transforma aquilo, através de modificações técnicas, em um remédio. Com a maconha, não pode ser diferente. Você tem até 480 substâncias, e dessas 480 substâncias, uma única, apenas uma única, tem algum tipo de efeito terapêutico – e, mesmo assim, não para todas as doenças, como eles querem promover", diz.
O senador Eduardo Girão (Novo-CE) também considera que a ideia de "maconha medicinal" faz parte de uma narrativa falsa. "Temo que o objetivo final seja a liberação do uso recreativo da maconha, assim como foi feito em vários países como Uruguai, Holanda e Estados Unidos, nações que padecem com o aumento do tráfico, do consumo e da violência", diz.
Lobby se apoia em interesses bilionários
O discurso pró-maconha se infiltrou no Legislativo principalmente depois da tramitação do projeto de lei (PL) 399 de 2015. Originalmente, a proposta tinha como objetivo somente autorizar a comercialização de medicamentos com "extratos, substratos, ou partes da planta denominada Cannabis sativa". Contudo, um substitutivo desse PL aprovado em 2021 por uma comissão especial da Câmara acrescentou uma série de dispositivos sobre plantio, processamento, pesquisa, transporte e comercialização da maconha no Brasil, autorizando, entre outras coisas, o cultivo domiciliar da planta.
Nos últimos anos, ONGs e associações que promovem a liberação da maconha no Brasil se multiplicaram, especialmente aquelas que alegam defender as propriedades medicinais da planta. Suas equipes são compostas por especialistas de diversas áreas, como psicólogos, médicos, advogados, agrônomos e profissionais de tecnologia da informação. Muitos deles têm comparecido ao Congresso para fazer lobby.
Essas entidades não costumam divulgar seus financiadores, mas há grande quantidade de empresas ligadas ao universo da maconha que, legal ou ilegalmente, já fazem dinheiro no Brasil e têm interesse em promover a maconha medicinal. Há alguns dias, um laboratório que desenvolve medicamentos à base de Cannabis recebeu um financiamento de 15 milhões do banco Itaú. Além disso, o mercado internacional da maconha vê grande potencial no Brasil, como já mostrou reportagem da Gazeta do Povo.
"Há muitas empresas de fora que têm interesse e que têm sucursais no Brasil, e que já estão vislumbrando um mercado enorme. Inclusive, hoje, na internet, se você pesquisar sobre cultivo de Cannabis, como plantar Cannabis, já há empresas que estão realmente fazendo propaganda em rede social. Só não estão fazendo na televisão e nas rádios porque, na verdade, é totalmente proibido. Mas, nas redes, há empresas que já estão tratando a Cannabis no Brasil como uma droga legalizada, apesar de continuar sendo uma droga proscrita. Certamente tem financiamento externo e tem financiamento interno de empresas que já estão querendo desenvolver esse mercado no Brasil", comenta Lasserre.
O senador Eduardo Girão (Novo-CE) diz que o lobby pró-maconha no Congresso tem influência de atores locais e internacionais. "Essa turma representa empresas estrangeiras e nacionais que objetivam lucrar, independentemente das tragédias pessoais, com o comércio da Cannabis, se valendo, para isso, até mesmo do sofrimento de famílias inteiras."
Ao mesmo tempo em que isso ocorre no Legislativo, os lobistas da Cannabis contam, para influenciar a opinião pública, com a ajuda de meios de comunicação, que, em grande parte, mostram-se favoráveis a uma ampla liberação da maconha. Um dos motivos para isso pode ser o alto índice de uso da substância entre comunicadores em comparação com outros profissionais. Não há estatísticas divulgadas sobre o assunto no Brasil, mas, nos Estados Unidos, uma pesquisa de 2018 dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) feita no estado do Colorado constatou que a área profissional de artes, mídia e entretenimento tinha, proporcionalmente, a segunda maior quantidade de usuários de maconha, atrás somente da área de hospedagem e serviços de alimentação.
Nos últimos anos, empresas do ramo da Cannabis têm divulgado, em meios de comunicação, estatísticas sobre o alto potencial do mercado da maconha no Brasil. Para Lasserre, é preciso olhar com ceticismo para esses números, que são inflados. O mercado, segundo ele, não é pequeno, mas tende a ser superestimado pelo interesse em promover a maconha como produto rentável.
"Não tenho a menor dúvida de que são números inflados. Eles certamente chegam à casa dos bilhões, mas o que não se considera é o que isso vai trazer de custo social. E isso não só em relação à questão do problema do vício. Eu falo de custos sociais em relação à questão de segurança pública. Vemos que o Uruguai teve aumento na violência, a Holanda teve aumento na violência. Tem a problemática da saúde. Quantos médicos vão ter que ser contratados, quantos postos de enfermeiros vão ter que ser abertos? Em relação à questão do INSS, quantas pessoas vão ser afastadas do trabalho [por causa da maconha] no momento produtivo da sua vida? A questão é muito mais do que só a arrecadação. Qual é o custo social de tudo isso?", questiona.
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