Em janeiro deste ano, na esquina das ruas Lamenha Lins com Chanceler Lauro Müller, no Parolin, um grupo de moradores da classe média experimentou o sabor dos protestos populares. Organizados em guerrilha, os "parolinenses de cima" como podem ser chamados, já que são gente da parte alta e mais urbanizada do bairro queimaram pneus no asfalto, mandando sinais de fumaça para a Copel.
Motivo: nos seis meses anteriores ao motim, não passava dia sem que a luz caísse naquelas quadras. Para os manifestantes, a causa dos blecautes era só uma a falta de infraestrutura para a construção, ali perto, de dois blocos de casas populares para reassentar 50 famílias de "parolinenses de baixo", retirados das margens do Córrego Guaíra.
Os maus humores entre a zona favelizada e a que lembra um condomínio de luxo é antiga. Basta lembrar que as primeiras ocupações na parte baixa do Parolin são da década de 1950. Naquela ocasião, uma Curitiba interiorana assistiu com espanto ao nascimento das vilas Parolin e Capanema (Torres). Nos anos 1980, a vilinha paupérrima do Parolin virou território de traficantes, vitimizando ainda mais seus 6 mil moradores, 45% do bairro. Os pobres sabem da tormenta que é ter a Cidade de Deus de um lado e o Morro do Sabão de outro, obrigando-os a um regime espartano para não desagradar a turma do crime organizado.
Em 2006, quando as primeiras assistentes sociais da Cohab bateram na porta dos barracos da baixada e iniciaram um recenseamento, o Parolin enfim respirou com 50 anos de atraso. O trabalho dos técnicos teve duplo impacto: pela primeira vez se traçou um retrato em minúcias da favela mais antiga da cidade. E pela última vez os moradores da parte de cima acreditaram que os casebres seriam retirados dali.
É simples. Junto com as estatísticas da prefeitura veio o anúncio de que a turma de baixo seria sujeita a um modelo moderno de regularização fundiária: ficaria onde está, com a realocação de 677 famílias em outras áreas disponíveis, o que incluía o Parolin de Cima.
Está-se hoje a meio caminho andado. Atualmente, 295 famílias já moram na casa nova. Cada um desses grupos custou em média R$ 23 mil ao programa habitacional. Somando tudo, entre regularização e reassentamentos, o PAC Parolin soma R$ 20 milhões de investimentos do governo federal e mais R$ 17 milhões da prefeitura. Só as áreas compradas para erguer novas casas somam 79 mil metros quadrados. Eram terrenos baldios, alguns ladeados por mansões com vista para a Avenida Wenceslau Brás. Foi o princípio da confusão.
Os reclamantes, que já costumavam responsabilizar a favela por assaltos, fazendo do Parolin o melhor mercado da cidade para cercas elétricas, agora tinham mais uma queixa: com a "subida dos mais pobres", os terrenos seriam desvalorizados. E a convivência com a vizinhança, insuportável. "Nosso maior medo sempre foi o lixo dos recicladores. Como lidar com isso?", pergunta um morador da área nobre.
Não chegou a ser formada uma associação oficial. Longe disso, os parolinenses de cima são quase uma sociedade secreta. Falam com a imprensa, mas não se deixam fotografar ou dizem o nome. À Cohab não deram folga nos últimos quatro anos. E não só a ela.
Depois dos pneus, os descontentes mostraram mais uma faceta: desceram a ladeira da Brigadeiro Franco e foram às falas com o mítico presidente da Associação de Moradores da Vila Parolin e Guaíra, Édson Pereira Rodrigues, sem a ajuda de quem diz a Cohab a prefeitura jamais teria entrado nos 25 becos da vila para fazer saneamento, avaliar moradias ou atender os necessitados. É uma parceria controversa, que deixa em papas até veteranos do movimento social.
O que se sabe do encontro dos "de cima" com Edson é que tratou de um assunto caro aos mais ilustrados: o choque cultural. Os novos moradores das ruas Chanceler Lauro Müller e Eugênio Parolin trouxeram dos rincões costumes como acumular recicláveis no quintal das casas, fazer churrasquinhos na calçada, ouvir música alta e deixar crianças soltando pipas nas ruas. "Mentiram para a gente. Há casas com mais de nove pessoas. Vai favelizar", reclama um, sobre o hábito popular de trazer um irmão "de favor" para morar. Os sobrados e casas somam parcos 43 metros quadrados cada.
Dos entreveros entre as duas culturas, o mais desalentador é a presença dos cavalos usados pelos carrinheiros. Eles galoparam até o platô. E agora os destemperos estomacais dos equinos são munição o bastante para uma próxima guerra. Segundo consta, o líder Edson coibiu os churrasquinhos na calçada. Mas para os "de cima", ter de recorrer pessoalmente ao líder da favela para garantir a ordem teve um sabor amargo de abandono à própria sorte.
Um Parolin só
A interação entre moradores de ocupação e as classes médias no Parolin é um caso único no cenário da habitação local. Pode-se ver semelhanças no assentamento Vila Nina, na Fazendinha. Ou na Vila Zumbi e Alpha Ville. Mas nada se compara ao Parolin, onde 12 mil moradores representam, meio a meio, o abismo social brasileiro. Se bem conduzida, a experiência pode apontar uma saída para os conflitos que hão de se desenhar nas 254 favelas da capital, moradia de 200 mil pessoas. E servir de modelo nacional de integração.
Ao lado da Água Verde, o Parolin é um bairro da imigração italiana, logo conservador. Surgiu no final do século 19. Outrora periferia, firmou cultura própria, bolsões de riqueza e um senso de pertença que faz a palavra "bairrismo" uma marca de nascença. A geografia dos capões, ali, contudo, é mais acidentada, o que favoreceu a ocupação irregular e o cisma.
A aposta da Cohab é que essa paixão pelo Parolin some a favor e que a "cidade formal", de cima, influencie a "cidade informal", de baixo. "Temos a nosso lado o fato de que nenhum conjunto popular de Curitiba virou favela. É visível que os reassentados estão cuidando bem das casas, colocando cerâmica, botando cor nas paredes", explica a assistente social Kelly Vasco, uma das gerentes da Cohab.
Com 21 anos de serviços prestados, Kelly conhece cada viela do Parolin. É o bastante para que acredite no sucesso da integração e na superação do preconceito contra as classes populares. "O Parolin da vila é comunidade de reunião mensal, decisões conjuntas. Fez grandes avanços. É uma gente de valor", diz, lembrando que as áreas urbanas estão se esgotando e que a convivência entre diferentes, em vez de um perigo, é uma garantia de desenvolvimento urbano. Nenhum urbanista sério discordaria de Kelly.
Parte dessa máxima começa a se realizar. As novas moradoras da Rua Eugênio Parolin falam com empolgação de uma vizinha de rua, "rica", que lhes bateu à porta, oferecendo amizade. Na Rua Chanceler Lauro Müller, os préstimos do pedreiro Elias Ubaldo Jeremias, 34 anos, reassentado, já foram descobertos. "Era pior quando havia um matagal aqui em frente", diz o morador, sobre o terreno comprado pela Cohab e transformado em moradia. Outras virão em breve.
A cabeleireira Leoni Portela, 57 anos, 26 de Parolin, diz que nunca sofreu discriminação dos abonados. Leocádia Amaral, 46 anos, desde os 8 na região e dezenas de enchentes no currículo, adorou "subir na vila", mas não acha que a relação vá mudar. "Cada um vai continuar do seu lado", filosofa. Ana Lúcia Petrolini, 40 anos, soube de uma moradora "de cima" que jurou vender a casa ao ver os ocupados chegando. Não conseguiu e se rendeu aos recém-chegados.
Há mesmo quem ache essa conversa de rejeição um papo furado. Hercílio de Lima, 77 anos, 57 de vila, foi na mocidade guardião da família Parolin. Conviveu com a nobreza do velho bairro. "Os pobres sabem conviver com as pessoas de dinheiro", aposta o veterano dono do cavalo que hoje forma paisagem com belos sobrados lá de cima. Chato mesmo só uma coisa: sua casa nova foi assaltada duas vezes. "Levaram até pano de prato. Nunca tinha me acontecido isso", conta. Ele é agora um típico morador do Parolin de Cima.