O debate sobre o uso da maconha medicinal no Brasil caminha para um desfecho favorável a pacientes que dependem do canabidiol (o óleo extraído da cannabis) para tratamentos de saúde, mas que contraria alguns setores do governo federal.
Na Câmara dos Deputados, um projeto do General Peternelli (PSL-SP) torna automática a liberação de medicamentos no Brasil já aprovados por autoridades sanitárias estrangeiras, como a americana. Se aprovada, a proposta permitiria a venda imediata de ao menos um remédio à base do óleo da maconha, usado para tratar epilepsia severa em crianças e que foi aprovado pelos EUA no ano passado.
A proposta de Peternelli conta com o apoio de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e outros deputados do partido do presidente Jair Bolsonaro. A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) e o general Eduardo Villas Bôas já defenderam publicamente o uso medicinal do canabidiol. Na prática, o projeto esvazia as funções da Anvisa, a agência reguladora brasileira.
Governo é contra plantar maconha para fins medicinais
O uso do óleo derivado da planta extrapolou o debate médico e avançou na pauta política após a Anvisa ter realizado consulta pública, sem ordem do governo, para estabelecer critérios de produção e, consequentemente, de consumo da substância no Brasil. Criticada pelo governo Jair Bolsonaro, a proposta autorizaria o plantio de maconha para fins medicinais e o restringiria apenas a lugares fechados e sob o comando de empresas credenciadas.
Após a conclusão da consulta, o formato final ainda não foi apresentado. Mas os ministros da Cidadania, Osmar Terra, e da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, defendem que o Brasil adote apenas a "cannabis sintética", produzida em laboratório, para evitar a necessidade de plantio.
Segundo Terra, liberar o plantio seria o início da liberação das drogas no Brasil, tese também defendida por Bolsonaro durante visita recente a uma empresa farmacêutica em São Paulo. "A nova direção do Brasil é de um presidente que respeita a família tradicional brasileira, é de um presidente que respeita a inocência da criança na sala de aula e diz não ao processo de legalização de drogas."
Em seu discurso, Bolsonaro ainda afirmou que agências reguladoras têm muito poder no Brasil, "para o bem ou para o mal". Em seguida, questionou o prazo para autorização de medicamentos, sugerindo que o "excesso de zelo da Anvisa" possa servir para vender facilidade.
Peternelli disse que considera bom o trabalho da agência brasileira, mas lamenta que a Anvisa não tenha um ação conjunta com órgãos internacionais. E também que seu projeto tenha ficado tão limitado à questão do canabidiol. "Não é disso que se trata. O projeto inclui sim o canabidiol, mas não de forma proposital. Quando o Eduardo (Bolsonaro) assinou a proposta essa polêmica nem existia", disse.
O parlamentar, no entanto, afirma não ver problema que o Brasil comercialize medicamentos à base de maconha natural. "Até porque eles podem ser importados, apesar de o preço impedir que famílias de baixa renda tenham acesso", disse. De acordo com a dose prescrita e a finalidade, o tratamento pode custar mais de R$ 1 mil por mês.
Ex-comandante do Exército e atual assessor do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do Palácio do Planalto, Villas Bôas é portador de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), doença autoimune incapacitante que pode ser tratada com canabidiol. Em entrevista ao SBT no mês passado, ele afirmou que não usa, mas defendeu o medicamento e citou "hipocrisia social" ao comentar as dificuldades enfrentadas pelos pacientes que buscam a droga.
Outros projetos querem liberar a maconha medicinal
No Senado tramita uma sugestão legislativa e um projeto de lei sobre maconha medicinal. O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) apresentou relatório favorável à sugestão legislativa (SUG) nº 6/2016, que propõe a regulamentação da maconha medicinal no Brasil. A proposta é de autoria da Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos.
No voto, ele cita a experiência da também senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) para apoiar o projeto. “Sou uma cidadã usuária que sabe o quanto é transformador na vida de outras pessoas. A gente não pode fechar essa porta”, disse a senadora. Gabrilli é tetraplégica e declarou usar o óleo à base de cannabis para controlar dores e espasmos musculares.
Vieira pediu para que o texto original – com 133 artigos – fosse simplificado e a proposta tem agora seis artigos. A Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa da casa aprovou na quinta-feira (26) o relatório. Agora a sugestão legislativa passa a tramitar como projeto de lei.
O senador Eduardo Girão (Podemos-CE) apresentou o projeto de lei 5.158/2019 que pretende obrigar o Sistema Único de Saúde (SUS) a fornecer gratuitamente remédios à base de canabidiol. Girão se posicionou contra a SUG 6/2019, por contemplar a possibilidade de uso de outras substâncias derivadas da maconha, além do canabidiol.
Como relator na CDH, Vieira votou contra outra sugestão (SUG 32/2019) que pretendia a legalizar a maconha para uso medicinal e recreativo e a proposta foi arquivada. Já o projeto de lei 514/2017, que está na Comissão de Constituição e Justiça, quer descriminalizar o cultivo de cannabis sativa para uso pessoal terapêutico, “em quantidade não mais do que suficiente ao tratamento, de acordo com a indispensável prescrição médica”.
A autoria é da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, baseada nas ideias apresentadas no programa e-Cidadania. Na justificativa, a comissão diz não ser a favor da descriminalização para uso recreativo. O relator do texto na CCJ é o senador Carlos Viana (PSD-MG). A proposição foi aprovada pela Comissão de Assuntos Sociais em novembro do ano passado.
Na Câmara são quatro projetos, dois deles apensados a outros. O PL 399/2015, de autoria do deputado Fábio Mitidieri (PSD-SE), pretende alterar a Lei nº 11.343, de 2006, “para viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta Cannabis sativa em sua formulação”. O projeto de Mitidieri uniu Carla Zambelli, bolsonarista de primeira ordem, ao deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) na luta pela aprovação do uso da maconha medicinal.
Tramitando desde 2015, a proposta aguarda instalação de comissão temporária. Na mesma situação está o PL 7187/2014, do ex-deputado Eurico Júnior (PV-RJ), que dispõe sobre a liberação e o uso medicinal da maconha. Foram apensados ao projeto do ex-deputado, dois projetos de teor parecido.
O que ex-PGR disse sobre o plantio de maconha medicinal
Antes de deixar a chefia da Procuradoria-Geral da República, Raquel Dodge, enviou parecer ao Supremo Tribunal Federal, no dia 13 de setembro, pedindo que seja determinado prazo para que a União e a Anvisa regulamentem o plantio de maconha com finalidade medicinal.
Ela indicou que houve "omissão inconstitucional" do poder público na implementação das condições necessárias ao acesso adequado dos brasileiros à utilização medicinal da cannabis. A manifestação se deu no âmbito de uma ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo partido PPS (atual Cidadania), que questiona trechos da Lei de Drogas e do Código Penal.
No parecer, a procuradora aponta que há diversas notícias de estudos que afirmam o potencial da planta e de seus extratos para curar doenças, ou amenizar seus sintomas e progressão, entre elas dores crônicas ou neuropáticas, esclerose múltipla e espasticidade, epilepsia refratária e efeitos colaterais de medicamentos para tratamento de aids ou câncer.
Como medicamentos com derivados da maconha podem ser adquiridos
De acordo com normas da Anvisa, a aquisição de medicamentos derivados de maconha só é possível por procedimento de importação, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado para tratamento de saúde, de produto industrializado tecnicamente elaborado e que possua em sua formulação o canabidiol em associação com outros canabinoides, dentre eles o THC.
Esses produtos devem ser constituídos de derivado vegetal; ser produzidos e distribuídos por estabelecimentos devidamente regularizados pelas autoridades competentes em seus países de origem para as atividades de produção, distribuição ou comercialização; e conter certificado de análise, com especificação e teor de canabidiol e THC, que atenda às respectivas exigências regulatórias das autoridades competentes em seus países de origem.
Descriminalização para uso pessoal será analisado pelo Supremo
A descriminalização do porte de drogas para uso pessoal é tema de discussão no STF desde 2001, e deve voltar ao plenário do dia 6 de novembro. O julgamento, que tem repercussão geral, volta a ser apreciado após o ministro Alexandre de Moraes, que havia pedido vista do processo, devolvê-lo à pauta no fim do ano passado. Três dos 11 ministros da Corte já votaram a favor da descriminalização – Gilmar Mendes, que é o relator, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso.
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