“A maconha não é uma mágica, como se o chá da erva pudesse fazer um doente melhorar de uma doença complexa”, afirmou o médico psiquiatra Ronaldo Laranjeira. Com mais de 40 anos de experiência na medicina, o professor de psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em entrevista para a Gazeta do Povo, alerta sobre a ampla difusão de ideias falsas sobre o uso medicinal da maconha, que ele chamou de “ideologia da maconha”, em que se desprezam as pesquisas científicas mais avançadas.
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O especialista recorda que o único que está comprovado sobre a utilização de substâncias extraídas da planta da maconha (cannabis sativa) é o aumento de ansiedade, depressão e quadros psicóticos. Com uma vasta experiência no tratamento de dependentes químicos, o médico criticou propostas de legalização do plantio de maconha no país, lembrando das consequências da medida em outros países, como Estados Unidos e Canadá, em que o número de usuários aumentou.
Confira a entrevista exclusiva de Ronaldo Laranjeira à Gazeta do Povo:
Como é o seu trabalho com dependentes químicos?
Ronaldo Laranjeira: Sou médico psiquiatra, fiz o doutorado e PhD em Londres. Hoje, sou professor titular em psiquiatria na Universidade Federal de São Paulo. Trabalho há 45 anos, desde que era aluno, com dependência química; tenho uma equipe e faço supervisão em várias clínicas. Na minha clínica, trato de casos complexos em dependência química, em que além da dependência existe algum transtorno psiquiátrico. É muito comum que a pessoa, além da dependência química, apresente depressão, dano cerebral e até problemas jurídicos. Nossa especialidade é tratar de casos complexos, que precisam de uma grande investigação, exames, avaliações e planejamento.
É comum ouvir que a maconha cura e é inofensiva, não causa dependência. É isso mesmo?
Ronaldo Laranjeira: Qualquer organização médica que tenha credibilidade não terá esse debate. Sobre a maconha, nem se fala do uso medicinal, fala-se da adoção de componentes da maconha para poucos casos com indícios científicos, como para crianças que não responderam ao tratamento normal, têm quadros convulsivos, por exemplo, e que possam se beneficiar de alguma forma.
É o que chamamos de um uso compassivo. Já que não tem o que fazer e se tiver algum efeito benéfico, a medicina não se opõe ao uso compassivo. O que é diferente do uso da maconha para autismo, demência e dor. Não tem estudo sério sobre o efeito da maconha, não existe nenhuma substância que possa ser boa para autismo e demência, não existe isso. É uma ilusão tamanha, uma ingenuidade quase criminosa.
A dependência ninguém mais duvida, só quem acha que não faz mal. Insisto: do ponto de vista médico, os elementos da maconha fazem parte das substâncias que causam dependência. Recentemente, eu vi um caso em que uma pessoa fumava 40 cigarros de maconha por dia. A pessoa não vai conseguir fumar nessa quantidade sem ter um componente de dependência. Então, é lógico que dá dependência. O que acontece é que não tem tantos sintomas de abstinência, como quando a pessoa para de usar um opiáceo.
Ninguém morre pelo uso da maconha ou pela abstinência. A maconha não tem a mortalidade, mas tem a incapacitação mental. Maconha não mata imediatamente, mas incapacita mentalmente. Por exemplo, pesquisas mostram que muitos adolescentes que começam a usar maconha não terminam o colegial ou não fazem faculdade. Para cada usuário de maconha, 4 ou 5 pessoas são afetadas.
A curto prazo, sob efeito da droga, a pessoa vai dirigir e ter acidentes. Às vezes, vai desenvolver quadros de vômitos e tontura, esse é o lado mais agudo imediato do uso. A médio prazo poderá ter maior risco de depressão, ansiedade, suicídio, transtorno psicótico subclínico e transtorno psicótico. O subclínico é a pessoa que vai ficando com ideias estranhas, não consegue estudar e a psiquiatria consegue identificar. O uso da maconha prolongado desregula a saúde mental, como problemas de memória ou até casos mais graves. Quem usa, terá algum prejuízo cognitivo. Esse é o preço, as pessoas precisam estar atentas.
Por outro lado, é importante perceber que o usuário de maconha não tem um prejuízo apenas individual, não é um comportamento individual [sem efeitos sociais]. As pessoas roubam para continuar a fumar; 50% dos usuários de maconha têm filhos e não cuidam deles. Eles são cuidados pelos avós, que não têm mais idade para cuidar de uma criança ou levar na escola. Não são raros os casos de negligência com crianças que tem relação com pais que utilizam maconha.
Quem defende o plantio da maconha costuma dizer que há pesquisas sobre os benefícios de elementos da planta para algumas doenças.
Ronaldo Laranjeira: São poucas as doenças, como convulsões, com algumas evidências [de que o uso da maconha possa ser benéfico]. Se o uso compassivo pode parecer eficaz em algum caso, é possível conseguir essas substâncias no Sistema Único de Saúde, que tem como dar o suporte para doenças de alto custo.
Mas, pelo alto risco, não tem sentido plantar maconha e vender para os vizinhos. Isso não é o jeito de lidar com doenças complexas. Se tem uma doença complexa com indício de que a maconha possa fazer efeito, é necessário saber qual elemento que deve ser extraído de maconha e quantos miligramas ao máximo se pode usar para que apresente algum efeito benéfico e não aumente ainda mais os efeitos colaterais já comprovados.
A maconha não é uma mágica, como se o chá da erva pudesse fazer um doente melhorar de uma doença complexa. Não é assim que a medicina trabalha. A maconha não pode ser tratada como uma droga milagrosa, é só fazer um chá e vai dar certo. A medicina não funciona assim, não é seguro para ninguém virar curandeiro da maconha. E é isso que tem acontecido no Brasil. Médicos especialistas em maconha são iguais a curandeiro, que enganam pacientes. Não é assim que evolui a medicina. São necessários ainda estudos [para ter uma medicação, e não apenas o uso compassivo] e os que defendem a maconha querem burlar [o processo].
O uso da maconha aumenta as chances da procura por outras drogas?
Ronaldo Laranjeira: Tem um grupo de usuários que fica só na maconha. Entretanto, a maconha por si só pode prejudicar o funcionamento cerebral e causar psicose. Então, por si só, já é uma droga que dificulta o desenvolvimento da pessoa. Mas ela predispõe para outras drogas. Há pessoas que, depois da maconha, usam cocaína, LSD, ecstasy e álcool. Tem pessoas que ficam só na maconha e outros que acabam acrescentando outras drogas, o que torna o que é ruim ainda pior, pois tudo isso desregula o cérebro. É uma desregulação prazerosa, mas não faz só isso. Se fosse só prazer, teríamos achado a chave de ouro. Mas não é isso que acontece, acaba desregulando várias outras partes do cérebro, como memória, concentração e a vida vai ficar mais limitada. E quando se une com outras drogas, a regulação fina emocional tende a desaparecer.
Com a sua experiência, a legalização pode favorecer o acesso antecipado por crianças e adolescentes?
Ronaldo Laranjeira: Com certeza. O crime organizado tem um mercado para os menores de idade. Foi isso que aconteceu nos Estados Unidos e Canadá. Nesses países, achou-se que o crime organizado ia desaparecer [com a legalização], mas não foi isso que aconteceu, foi o contrário. O crime aumentou, porque vende mais barato e para pessoas que o sistema legalizado não vende, ou seja, menores de idade. A legalização vai proteger nossas crianças? Não vai. Não é isso que aconteceu nos Estados Unidos. A legalização tende a piorar o problema do acesso para adolescentes e crianças. Nesse cenário, a polícia faz menos fiscalização e as pessoas vendem mais barato e para menores de idade. A legalização amplia o problema.
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