"Nós só cumprimos a lei", diz gestor
A Urbs não reconhece o comércio de placas de táxi, embora as negociações ocorram na porta em frente, no interior da rodoferroviária. "É voz corrente que existe essa transferência mediante uma paga de valor, só que isso não é reconhecido por legislação nenhuma, nem pela administração", diz o gestor da área de táxi e transporte comercial, José Carlos Gomes Pereira Filho. "Não temos como provar. A intenção, a voz corrente, não mostra o fato", argumenta. "Nós gerenciamos o serviço de táxi e fazemos tudo o que a lei determina".
A revisão da lei, alega José Carlos, depende do Legislativo municipal, não da Urbs. "Enquanto a legislação permitir a transferência, e todos os requisitos exigidos por lei forem cumpridos, essa transferência vai ser feita". Segundo ele, não se pode dimensionar a frota de táxi pelo tamanho da população. O número de bandeiradas por dia caiu de 20, no início da década de 1980, quando a capital tinha 850 mil moradores, para as atuais 12.
A qualidade do transporte coletivo, diz ele, seria um dos motivos.
Todos os anos, entre 70 e 80 pessoas abrem mão do direito a uma placa de táxi em Curitiba. Numa manobra tão simples como trocar a marcha, passam adiante uma permissão pública que, na pior das hipóteses, rende R$ 3 mil por mês. O fenômeno não se explica pela falta de passageiros, cada vez em maior número, nem por uma improvável onda de violência que pudesse justificar o medo das ruas. Por trás desse troca-troca existe um intenso comércio de licenças de táxi, atividade ilegal por se tratar de serviço público. Um negócio de R$ 14 milhões por ano, tendo-se por base o valor médio de R$ 180 mil de uma placa no mercado clandestino. Quem paga a conta é o usuário, com uma das tarifas mais caras do país.
As notícias das transações correm de boca em boca, mas tornar público que por trás da transferência existe o comércio resultaria na cassação da placa antes mesmo de botar a mão no dinheiro. Por isso, toda a negociação acontece às escuras, no banco de trás. Apesar de a venda ilegal ser voz corrente em qualquer ponto de táxi da cidade, oficialmente a Urbanização de Curitiba S/A (Urbs), empresa de economia mista encarregada de gerir o setor, não reconhece a prática. Para a Urbs, que homologa o termo de transferência, essas 70 ou 80 transações anuais não passam de abnegados atos de doação. Mas, nos bastidores, a conversa é outra.
Durante três semanas de consultas aos arquivos da Urbs, a Gazeta do Povo cruzou dados de 4.910 condutores ativos com os de outros 16,6 mil do arquivo morto. Dos 2.252 carros em circulação na capital, 2.035 estão em nome de permissionários individuais e outros 217 registrados por empresas. São raras as licenças de táxi que permanecem com a mesma pessoa desde a última outorga, feita há 33 anos. A maioria praticamente todas foi passando de mão em mão por meio de "doações", ou "transferências voluntárias". Como a lei limita a uma placa por permissionário, no caso de pessoa física, a frota curitibana se assemelha hoje a um grande laranjal.
Não são poucos os que foram comprando placas até formar sua pequena frota particular, pondo o carro no nome da mulher, dos filhos, de sobrinhos e mesmo de amigos ou empregados. Outros diversificaram o negócio arrendando placas de viúvas, que herdaram a permissão do marido, e colocaram empregados para trabalhar. O arrendamento, tão ilegal quanto a venda da placa, custa em média R$ 1 mil por mês. Na clandestinidade, o mercado foi sendo regulado pela lei da oferta e da procura. Com falta de novas placas, tornou-se um negócio valorizado. Em 1990, uma permissão custava R$ 25 mil em Curitiba. Hoje, não sai por menos de R$ 180 mil.
Numa investigação conjunta, Gazeta do Povo e TV Paranaense descobriram os meandros da compra e venda de licenças de táxi, além da omissão da Urbs. Doze taxistas confirmaram a facilidade de se conseguir uma permissão. Sem saber que estava sendo filmado, um atravessador que atua a 30 metros da porta da Urbs, na rodoferroviária, explicou o passo-a-passo da negociação (leia na página ao lado). Também sem saberem que estavam sendo filmados, dois funcionários da Urbs confirmaram saber da existência do comércio de licenças. "Você tem que negociar direto com o taxista. Aqui não vai ter problema", afirmou um deles. E não há problemas mesmo.
À luz da Constituição e da Lei 8.987, que regem as concessões e permissões públicas, quem abre mão da licença não tem o direito de indicar o novo beneficiado. Ela deveria voltar para o agente regulador, no caso curitibano, a Urbs, para uma nova outorga. Não é o que acontece em Curitiba e na maioria das cidades brasileiras. Com a atual falta de controle, permissões estão nas mãos de pessoas que já nem moram mais no país. Paulo César Mocelin Cardoso, por exemplo, é o titular do carro 1.598, mas mora e trabalha no Japão. Por telefone, a irmã dele diz que ele está prestes a voltar e inclusive pensa em comprar uma nova placa.
No ponto da Praça Carlos Gomes, o táxi 142 é guiado só por colaboradores, já que o titular, Roberto Gundermann, está morando nos Estados Unidos. Roberto seria laranja de um taxista dono de mais cinco placas em nome de testas-de-ferro. Há, ainda, o caso de Thereza Delma Kossatz Lullez, de 75 anos, que mora em Paranaguá e tem o carro 620 em Curitiba, e de Zeny Leoni Casagrande, 77 anos, moradora de Colombo e titular da placa 1.810. Estes são apenas alguns dos muitos casos suspeitos consolidados ao longo do tempo por falta de fiscalização. Por trás dos laranjas estão políticos, advogados e, segundo taxistas, até juízes.
O problema da máfia laranja é antigo. Desde 1975, data das últimas permissões, oito prefeitos e oito bancadas de vereadores tiveram a oportunidade de ajustar a lei municipal às novas regras para mudar o sistema. "A Urbs e a Câmara de Vereadores são paternalistas porque protegem os donos de permissões que não trabalham, pondo outros para trabalhar", diz um taxista que atua há 30 anos no setor e ainda não tem carro próprio.
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