Quatro pinheiros no caminho
Os moradores da Chácara dos Meninos de Quatro Pinheiros têm entre 7 e 17 anos e são na maioria da região metropolitana de Curitiba em especial Almirante Tamandaré e Colombo. No momento, dos 80 guris, há seis da Vila das Torres e cinco do Parolin as duas favelas mais antigas da capital. Seis apenas cumprem medidas socioeducativas e outros oito são órfãos. Os demais se mudaram para Mandirituba depois de longo estágio no sereno e no abandono. A história é quase sempre a mesma: melhor estar na rua do que na companhia de padrastos violentos e afins.
"R.", 16 anos, não tem família. Mas é como se tivesse. Desde que foi dada a largada para o encontro com os pais dos meninos da chácara, ele tem ficado na frente do computador, ajudando nos textos que serão entregues a juízes e promotores. Na mesa ao lado, grupos se alternam no acabamento dos cartazes mesmo quando não há a mínima chance de retorno imediato. Fosse assim, todo o trabalho realizado na instituição iria se perder.
"F.M.S", 15 anos, tem três anos e meio de Mandirituba. Nasceu no Uberaba, tem seis irmãos e seus pais estão desempregados. É desvio de rota. Não bastasse, há drogas na família. "Mas minha mãe vai na Igreja do Cabral", festeja, sobre a possibilidade de que depois deste domingo haja algo de novo sob o sol. Para "T.B.", 17 anos, dois anos de chácara, as chances são ainda menores. Além de droga e bebida, seu mapa de volta inclui superar os desdobramentos do trauma sofrido com o assassinato do pai: o motivo do crime foi banal a dívida com um terreno.
Há uma semana, não tem cartolina nem pincel atômico que chegue para a piazada da Chácara dos Meninos de Quatro Pinheiros, em Mandirituba, região metropolitana de Curitiba. A orientação dada pelo educador Fernando de Gois, 49 anos, idealizador e gestor da comunidade, é que os 80 moradores formem grupos e desenhem mapas que apontem o caminho de volta para casa. A tarefa tem sido cumprida no capricho, afinal, hoje em encontro na Igreja do Cabral os pais dos garotos vão fazer o mesmo: mapas, só que dessa vez apontando o percurso que devem fazer para receber seus filhos de volta. Se as estradas das crianças e as dos adultos se cruzarem "bingo", é chegada a hora do retorno.
A técnica com perdão pelo trocadilho é "meio caminho andado". A idéia de "estrada errada", "vida na rua", "andar pelo mundo", entre outras variações para o tema, faz parte da experiência tanto dos pais quanto das crianças e adolescentes ligados ao projeto. Todos, de alguma forma, um dia se perderam uns dos outros. Os mapas já feitos pelos meninos confirmam a intimidade com o tema: não faltam desenhos de labirintos com inúmeros becos aqui e ali acompanhados de setas em que está escrito "drogas", "abandono", "boca de fumo", "furtos em mercado" e "violência doméstica", para citar algumas dessas revelações.
Trajetória
Para chegar a esse resultado é que são elas. Nem só cartolina e pincel bastam. O encontro prévio em que Gois propôs o mapa para os meninos custou mais horas que o previsto. Levou uma semana, deixando a chácara de canelas para o ar. Só deslizou na hora em que um morador de 14 anos se levantou e tornou público o seu "vida como ela é". Para surpresa do próprio criador da chácara que foi educador de rua e já carrega mais de 20 anos de experiência no ramo , a maioria não critica a família na frente dos colegas, preferindo desconsiderar o motivo que os levou até ali. Não bastasse, culpam-se pela separação. "Tive de perguntar por que vieram parar na chácara se a família deles era tão perfeita assim. Eles fantasiam, falam daquilo que gostariam de ter", explica Fernando.
A expectativa para o encontro de logo mais é que os pais percebam sua parcela de responsabilidade no abandono e que bolem um plano de resgate. Vai ser outra etapa de lascar. Embora não haja estatísticas seguras, sabe-se que a situação das famílias é uma lástima: a maioria dos pais não tem condições de receber os filhos. "São de baixa escolaridade, muitos não têm emprego e 100% apresenta problema social", ilustra o educador.
Conversa afiada
O primeiro encontro de pais de moradores da chácara ocorreu em 1995 e virou rotina na instituição. A adesão costuma ser de 30% das famílias. Mas foi de um ano para cá que a abordagem se sofisticou. Segundo Gois, vale a pena. De 2006 para cá, seis meninos da chácara acharam seu mapa do caminho. Em 2007, podem ser dez. É uma vitória sem tamanho para quem trabalha com infância e adolescência em situação de risco e em situação de rua.
Para os moradores, vida não é novela. Sobram crônicas de violência, pobreza extrema e estragos provocados pelas drogas e pelo alcoolismo. Fazer as malas não equivale a um passeio no parque. Daí o recomeço ser tão raro quanto difícil. É comum ouvir algum garoto dizer que simplesmente não quer achar atalho nenhum. A chácara reconhecida pela Unicef como uma das mais importantes experiências latino-americanas no ramo se tornou para dezenas de meninos um vínculo tão ou mais forte do que a própria família. Além do mais, ali não lhes falta exemplos positivos: uma subsede da instituição, em Curitiba, já funciona como república e abriga nove jovens com mais de 18 anos, egressos de Mandirituba, e já cursando universidade.
Mas foi-se o tempo em que a condição de abrigado por melhor que possa ser num lugar como a Quatro Pinheiros deixou de ser considerada um fim em si mesma. O consenso entre educadores é que é preciso resolver o conflito com a família, o que acaba incluindo pai, mãe, irmãos, além de tias e avós cuidadoras, no rol de responsabilidades. Essa parte do programa, contudo, só não avança mais porque inexistem políticas públicas para acompanhar os pais.
A própria chácara tem feito o que pode. Ora conta com a ajuda especializada de pesquisadores, como a educadora Araci Asineli da Luz, da UFPR. Ora recorre a canetas, papéis e trabalhos de grupo para retomar o que estava partido. A criatividade tem contado a favor. No encontro que ocorre hoje no Cabral, dois juízes e uma promotora que confirmaram presença vão receber cartas decoradas pelos garotos, nas quais pedem mais participação da Justiça nessa viagem de volta para casa. Natural: para os meninos, a distância entre Mandirituba e qualquer lugar é enorme. Eles só precisam de uma carona para não se perder no meio do caminho.
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